30 de setembro de 2004

Jogos de luz

A brisa húmida puxava-lhe os cabelos. No varandim do farol observava o reflexo do luar sobre o mar, nessa noite peculiarmente belo e intenso.

O pensamento estava preso a uma sombra, uma sombra de mulher que nunca conhecera, mas não conseguia esquecer. Umas pegadas em areia húmida, uns traços a serem pagados da memória da areia e uma sombra, só uma sombra, um reflexo de uma criatura do mar de sonhos,

...talvez uma sereia.



Outros Silêncios

Em Cada Mão
(Alexandre Santos)

Renascer em cada mão
Ter nos olhos o silêncio do amor

Quando a luta se torna mais febril
E a criança que existe em nós quer partir
Mas fica a vontade de viver
Me faz mais forte para ver
Criança mansa e feliz

Se o suor de cada rosto vencer
E o cansaço de cada um resistir
Mas outros virão fazer o sonho seguir
E ajudar no refrão

Renascer em cada mão
Ter nos olhos o silêncio do amor


Entre silêncios e silêncios, há alguns que expressam mais que muitos sons.



29 de setembro de 2004

A promessa (parte I)

Vira-a pela primeira vez numa manhã fresca de fim de verão. Era o início de mais um ano lectivo e foi deixar a sua sobrinha ao colégio. Não era normal, na verdade nunca tinha acontecido, mas naquela manhã, uma súbita birra tinha ditado a sua sorte, ou o seu azar.

Estava já terrivelmente atrasado, mas tudo à sua volta parecia desmoronar à sua passagem apressada, como uma pilha de caixas colocadas em pirâmide num qualquer hipermercado. Na sua cabeça, um pensamento dominava a sua agitação, o saber que mais lhe poderia acontecer nessa manhã, a primeira de trabalho depois das férias.

Chegou pontual e tocou à porta do colégio. Entrou e foi recebido por um longo sorriso de boas vindas, alguém que chamou a sua sobrinha pelo nome e lhe deu um beijo carinhoso. Depois ela olhou para ele e nesse momento, ele sentiu-se cegar às mãos da luz que os seus intensos olhos verdes irradiavam. Não conseguia apartar o olhar daquela luz. Estava literalmente cego, queria fugir mas não sabia por ou para onde. Procurou no chão sob os seus pés a segurança e a firmeza que escasseava ao seu pensamento.

Então a sua voz doce deu-lhe voz de partida:

- Se quiser, pode acompanha-la até à sala...

Leva-la até à sala, mas como? Se os seu cérebro se recusava a dar a ordem aos seus músculos para se afastarem daquela luz que o encantava e amarrava àquele porto que se parecia tão seguro.

Depois incontrolavelmente, começou a desenhar na sua cegueira a sua imagem completa. Pintou-lhe a pele num tom dourado, um dourado sol, elevou a sua cabeça a uns bons 1,60 do solo, para lhe colocar um cabelo castanho dourado, com o comprimento ideal para escorrer entre os seus dedos enquanto lhe acariciava o pescoço.

Sentiu que estava literalmente enfeitiçado e apenas uma magia pura o poderia libertar daquele sentimento que reprimia a sua acção.

Subitamente sentiu que um puxão na sua mão o arrancava daquele estado de letargia, ao mesmo tempo que uma doce e inocente voz feminina lhe indicava o caminho que não queria percorrer:

- Vem tio, vem comigo até à sala ver os meus amigos.

Dito isto sentiu-se arrastado pelo corredor como uma esfregona em direcção à sala, mas o seu pensamento permanecia bem alto, no topo do cabo apontado para trás, em direcção à luz que sentia brilhar nas suas costas.

À porta sala, depois de conhecer os amigos da sobrinha, deu-lhe um leve beijo e deixou-lhe uma promessa:

- Amanhã é tio que te vem trazer outra vez. É uma promessa!

Aquela era uma promessa que sentiu fazer, mais para si, do que para a sua sobrinha.



28 de setembro de 2004

O Silêncio

Silêncio
Um som sem corpo
Apenas um espírito
Uma alma despida
Calada
Devorando impacientemente
Os sinais do mundo à sua volta.

Mastigando cegamente ruídos
Sons e notas
Distracções e divertimentos
E no limite das suas forças
Por fim saliva e cospe
Cospe a paz
O sossego
A tranquilidade
A calma serena e bela
Cruel com as palavras
Cujo fogo mata sem piedade.

Silêncio
Separação perfeita do corpo imperfeito
Deixa no ar apenas um som
O sopro da sublime união, por tantos almejada
Que se emancipa num carinho
Num toque espontâneo de uma mão
Afagando a pele quente e orvalhada
Que se liberta num tremor de emoção.


25 de setembro de 2004

O Abrigo

No teu seio me abrigo
Me escondo,
Ele me conforta
Me agasalha
Me alimenta.
Uma existência modesta
Numa noite fria
Em que só tu
Solidão
Me acolhes no teu seio
Me abraças
Me beijas
Me amas
E não me desterras
Para um mundo cheio de gente
Que me olha
Me mira
Me observa
Me analisa
Me escalpeliza
Me classifica por fim,
Mal
Pois não me conhecem.
Ai solidão
Teu seio é fortaleza, reduto, castelo, farol
Baluarte de tantas vidas,
Tantas fantasias, sonhos e utopias
Ai solidão
Abriga no teu seio de mulher
A chama de uma paixão
Que não quero deixar morrer
A paixão de amar e viver.


A Casa da Lagoa (Parte III)

Seguiu o seu caminho. O longo corredor com paredes pintadas a verde água lembrava-lhe sempre o verão e a cor das águas tropicais. Reflectia entretanto sobre as últimas palavras trocadas com Filomena. Já tinham alguns anos de convívio, mas nunca se sentira tentado a olhar para a mulher que se escondia por baixo da bata branca, mas hoje, reparara na Filomena mulher e não na Filomena médica.

A última fronteira de cor azul aproximava-se vertiginosamente e logo afastou os olhos da imaginação da figura da Dra. Filomena, sua colega. Aquela porta azul em cujo puxador pousava agora a mão era a última barreira que o separava da confusão do serviço de urgência. Aquele era um serviço que não era do seu agrado, afinal ele era internista, mas a falta crónica de pessoal médico aliada a outras condicionantes bem mais vazias, obrigavam-no a fazer ali serviço todas as semanas. Para seu azar tinha logo que retomar o serviço no dia em que lhe calhava a urgência, pensou ele enquanto a porta batia nas suas costa marcando de forma inequívoca o seu destino para as próximas horas.

Percorreu o corredor num passo sofrido, acenando para os diversos gabinetes e salas onde os colegas faziam atendimento. Cruzou-se com a enfermeira Manuela, que lhe deitou um olhar manifestamente brincalhão, enquanto lhe lançava um piropo:

- Sr. Dr. João, vem bem tostadinho, vejo que as férias lhe fizeram bem. Se não estivesse de serviço era capaz de o convidar para... um café.

Acompanhou estas palavras com uns risinhos, enquanto um olhar penetrante trespassou a sua bata, mas que para infelicidade dela esbarrou no pólo vermelho e nas calças azuis.

Era o segundo elogio em menos de cinco minutos. Um espanto apoderou-se do seu pensamento, que se passaria, estaria mesmo diferente? Estava incomodado. Talvez aquela conversa com o Sr. António e a lembrança daquele paraíso à beira da lagoa, que tinha esperança de partilhar com ela o tivessem modificado, mas notar-se-ia assim tanto?

Decidiu responder:

- Enfermeira Manuela, vejo que o trabalho também lhe tem feito bem, está mais elegante. Quanto ao amável convite terá de ficar em lista de espera, pois parece-me que tenho ali pacientes classificados com a cor vermelha.

Continuou em direcção ao gabinete onde esperava encontrar o Dr. Lourenço, quem se esperava que substituísse. Ao chegar à porta, viu que Lourenço atendia uma senhora. Parou e gesticulando tentou dizer-lhe que voltaria depois, mas Lourenço com um enorme, mais, com um descomunal sorriso não o deixou abalar. Colocando-se de pé foi dizendo:

- Caro Dr. João Miguel, estávamos mesmo a falar de si. Aqui a Sra. Dª Cândida estava a elogiar o talento médico do colega e perguntava se o colega não iria estar hoje, pois queria que o Dr. a consultasse.

João Miguel olhou com espanto para Dª Cândida Nem a tinha reconhecido quando chegou à porta. Agora percebia o gigantesco sorriso na cara de Lourenço.

Lembrava-se da primeira vez que tinha visto a Dª Cândida. Tinha sido ali, naquele mesmo gabinete, uns meses após o falecimento do marido. Senhora de uns bem conservados 60 e tal anos, tinha ficado muito transtornada com a morte do marido, tinha-se isolado e acabara no hospital pela mão da filha que não aceitava que a mãe tivesse decidido deixar de viver. Os seus dias resumiam-se aos passeios entre a sala onde deixava que a televisão lhe abrisse as portas de um mundo que agora não aceitava como seu e o quarto onde se refugiava do mundo que a televisão teimava em lhe impingir.

Claramente aquele não era um caso para ele, mas a hipertensão que lhe detectou já era, então para a acompanhar decidira coloca-la na sua lista de consultas externas. Após alguns meses notou que passara a ser um confidente da Dª Cândida. Esta procurava nas suas consultas uma companhia para conversar, pois aparentemente os filhos, demasiado absorvidos por sabe-se lá o quê, não tinham tempo para a ouvir e confortar na dor da solidão forçada.

Nessa altura deu instruções precisas à secretária para agendar a Dª Cândida sempre um último lugar, independentemente das vagas, por forma a não perturbar o normal funcionamento das consultas e assim, ela sempre poderia desabafar, afinal tudo o que pedia era tempo e alguém que a ouvisse.

Sem querer tinha-se afeiçoado àquela senhora que, com o dobro da sua idade, sentia por ele um certo instinto maternal, como ficou provado nas palavras com que o cumprimentou.

- Dr. João Miguel, o Dr. Lourenço estava-me a dizer que tinha ido de férias. Fez muito bem e espero que se tenha alimentado convenientemente, pois o Dr. estava magro, veja lá não adoeça, pois que vai ser dos seus doentes?

- Foram boas Dª Cândida. E não se preocupe que quando estiver mal, vou-lhe pedir para me fazer uma canjinha, daquelas que o seu Francisco tanto gostava.

- Eram a sua salvação Dr, João Miguel, sempre que se sentia fraco metia-o na cama com uma canjinha e no dia seguinte parecia outro homem.

Nisto, o Dr. Lourenço aproveitou para preparar a sua saída.

- Dª Cândida, agora que o Dr. João Miguel já chegou, vou deixar que ele a observe.

- Não se importa pois não Dr. Lourenço? Sabe, eu gosto muito do Sr. Dr., mas como já aqui está o Dr. João Miguel preferia...

- De modo algum Dª Cândida! – Disse o Dr. Lourenço ao mesmo tempo que piscava o olho ao Dr. João Miguel.

- Vai ter de nos dispensar apenas alguns minutos para que possa por o Dr. João ao corrente dos episódios de urgência pendentes, pois agora ele vai ter de os acompanhar.

Dito isto, o Dr. Lourenço pegou em alguns papéis que estavam sobre a secretária e dirigiu-se para uma sala contígua na companhia do Dr. João Lourenço.

- Curiosa esta Dª Cândida, veio apenas saber de ti, alguém lhe tinha dito que entravas hoje de serviço. Fartou-se de elogiar as tuas capacidades, mas não lhe consegui arrancar uma única queixa!

- Caro Lourenço, o problema desta senhora é atenção, a morte do marido deixo-a numa solidão devastadora e os filhos infelizmente ainda não compreenderam que a ajuda que a mãe necessita não é clínica, mas afectiva.




23 de setembro de 2004

O Principio Escondido

Entre o sonho e a realidade, hoje escolhi esta última para uma singela reflexão sobre sonhos, amor e felicidade.

É verdade que muitos peixinhos deste oceano de pó sonham com o amor e a felicidade, mas com frequência desesperam e sentem que por força de correntes caprichosas nunca atingirão a meta de um amor perfeito, ou da felicidade plena.

Foi então, que do alto da torre do farol, olhando a luz que sem medo se aventura em direcção a um mundo desconhecido, escuro e frio, me questionei: o que haveria de errado neste vasto mar empoeirado de sentimentos?

Olhei fixamente o amor procurando mergulhar profundamente na sua essência.

Que será o amor?

Será ele simplesmente um sonho, a miragem de um oásis, criada para nos ajudar a travessia do deserto na vida, na qual a fresca e revigorante água se transformou em quente e árida areia, ou uma espécie de cenoura na ponta de um pau?

E qual o papel da felicidade?

Talvez essa fosse a sombra da palmeira, ou a água do poço do oásis, aquela que sacia a seda, que refresca, alivia o calor infernal de viver cada dia com se atravessássemos um desfiladeiro descomunal, com os pés assente sobre um fino cabo, um corda bamba.

Os meus pensamentos acompanhavam o vai e vem, o subir e o descer das ondas de um mar agitado, que à minha frente, espumando, desafia os incautos marinheiros que se atrevem a procurar no seu seio a reposta mistérios que ele nunca revelará inteiramente.

Foi nesse momento que me pareceu ver uma luz que piscava à minha frente e do seu interior brotou numa brisa fresca e húmida a visão dos peixinhos que correm esbaforidos de um lado para o outro procurando o amor e a felicidade como se eles fossem a meta, o objectivo, uma finalidade, um limite, um fim, em resumo um ponto de chegada, não se apercebendo que na verdade estes são incontestavelmente um Ponto de Partida.

Tal qual aquela pequena porção de areia que antecede à boca do mar, eles são o átrio de uma grande caminhada e de onde não é possível deslumbrar um final.

Eles são a realidade que marca o nascimento do sonho, um sonho que é necessário alimentar de sono, de momentos de carinho, de paixão, de romance, tudo concebido e consumado com muito amor, apaladado com sentimentos intensos e leais.

Virando o meu olhar para terra, parei o movimento circular da luz do farol, apontei do seu foco em direcção aos peixinhos do pó. Lá dentro coloquei uma mensagem subliminar que dizia:

"Quando pensarem que atingiram a vossa meta de sentimentos, não olhem para trás, para ver onde estão os outros sonhadores, projectem antes o vosso olhar para o horizonte infinito que se estende à vossa frente e não se assustem se não vislumbrarem um fim, pois esse é o melhor sinal que a luz da felicidade plena permanece acesa em vós, alimentada por um amor de sonho perfeito."




21 de setembro de 2004

Os Limites

Flutuo suspenso pelas longas cordas do meu pensamento, memórias fortes ou simples vislumbres de lugares onde nunca estive, nomes que não lembro, caras que nunca vi, cheiros nunca cheirados, tudo incrivelmente familiar.

Vogo num mar infinito de sensações, num espaço sem tempo, num tempo livre das amarras de um qualquer espaço que limita a visão. Este é um universo meu, só meu, onde as asas da minha imaginação são livres de transportar a minha essência, ultrapassando limites nunca sonhados.

Levanto a minha mão imaginária e percorro um corpo de mulher, a pele macia, naturalmente hidratada e apetitosamente deliciosa. O meu paladar guloso clama pelo deleite daquela pele na ponta da língua. Na boca, milhares de papilas gustativas atropelam-se pelo desejo de saborear o êxtase do arrepio que acompanha o suave ardor da viagem da sua mãe ao percorrer cada centímetro daquela concha protectora de uma alma escaldante de prazer.

Aperto-a com vigor, o braço sob as costas e a mão sob os cabelos na base da nuca ampara o pendor da sua entrega, uma rendição fervorosa e consentida, uma partida por caminhos tantas vezes percorridos, mas sempre novos e misteriosamente desconhecidos.

Desfaleço ligeiramente numa fraqueza inconsciente. Recobro o sentido com um grito mudo emanado em uníssono pelos corpos unidos no prazer de um instante de glória sublime, uma fracção de tempo incompreensivelmente curta, mas infinitamente bela.

Abraço com força aquela alma em forma de mulher que agora se afasta para longe, muito longe, fora dos limites da minha realidade.Flutuo, flutuo, permaneço a flutuar dentro dos limites do meu universo com a esperança que alguma embarcação com nome de sereia me estenda uma mão real, me tome nos seus braços, liberte destes limites…

… e guie para outro universo repleto de estrelas.


20 de setembro de 2004

A Casa da Lagoa (Parte II)

Aquele simples acto de inspiração foi suficiente para devolver João Miguel ao espaço e tempo que o rodeava, abandonando a recordação do encontro com o Sr. António e o doce sabor da sua primeira conquista, que agora se desvanecia lentamente na retina da sua memória.

À sua frente, sobre a mesa da esplanada, a torrada de grossas fatias de pão de forma caseiro e o galão ainda ligeiramente fumegante aguardavam o seu despertar, o acordar para a vida, para as obrigações e desafios diários que agora teria de enfrentar.

Olhando de frente para a banheira redonda, que pomposamente tinham apelidado de fonte luminosa, deitou a mão a um pedaço de pão generosamente barrado de manteiga, que acompanhou com um sorvo de leite com café. A amena manhã de Setembro, para um fim de verão demasiado morno, até talvez um pouco frio, estava admiravelmente agradável. O sol escondido pelo pano cru dos imponentes chapéus aquecia o ar fresco e sadio da manhã, enquanto um leve aroma que não conseguia identificar lhe invadia suavemente as narinas, adocicando-lhe a alma.

Olhou apressadamente para o relógio e verificou que estava um pouco atrasado. Sem hesitação tragou o resto do pequeno-almoço, pagou a conta com um cumprimento de braço no ar e seguiu a pé pela rua. Foi pequeno o passeio acelerado, apenas uns duzentos metros até à porta do seu local de trabalho. Logo que atravessou a porta, retirou da pasta que o acompanhava o uniforme que vestiu ali mesmo no hall. Já equipado a rigor foi atravessando energicamente as portas que atrás de si ficavam a balouçar, ainda frenéticas pela energia que as tinha atingido.

Pelo caminho encontrou Filomena, que parecia ter envelhecido dez anos desde a última vez que a vira há uma semana atrás, antes de ter entrado de férias. Filomena teria aproximadamente quarenta e cinco anos, algo baixa e magra, mas mesmo assim uma mulher atraente, muito por força de uma elegância natural e um irrepreensível bom gosto na hora de cinzelar a seus atributos inatos. O cabelo curto dava-lhe inclusive um certo ar juvenil que poderia trair mesmo um olhar mais experiente.

- Olá Filomena, estás com má cara, não me digas que estás doente – Disse João Miguel com um leve sorriso trocista.

- Pois, pois meu menino, uns lembram-se de ir de férias e os outros é que pagam as favas! Não imaginas o que tem isto tem sido, ainda não consegui um momento de descanso desde que te foste...

- Não me digas que agora me vais culpar de tudo? - disse ele interrompendo a conversa e espelhando no rosto a máscara de menino injustiçado.

- Claro que não, não sejas tonto, mas a verdade é que isto tem sido um inferno. Aqui onde me vês, já há quase 48 horas que não vou à cama, estou de rastos.

- Bem isso explica essa cara, mas deixa que já voltei e estou cheio de energia. Vou dar-te uma ajuda que estou a ver que precisas. Vai descansar um pouco que eu controlo a situação.

- Ó que alegria, chegou o Dr. João Miguel supremo defensor da médicas em apuros. Ai meu menino se eu não fosse casada, quem se atirava ao teu pescoço um dia destes era eu, mas para meu azar continuo profundamente apaixonada pelo meu marido...

- Para teu e meu, minha querida Dra. Filomena, pois como homem descomprometido e sensível nunca deixaria fugir uma flor como tu.

Trocaram dois beijos formalmente puros entre risos de amizade, para seguirem cada um o seu caminho, em direcções opostas, mas visivelmente coincidentes.


19 de setembro de 2004

O Arrepio

Sentiu as palavras crescerem, crescerem e multiplicarem-se, amamentadas por um turbilhão de sentimentos. Amassados formavam um composto explosivo e perigoso, que pouco a pouco fugia da sua cabeça, com a força de uma onda gigantesca, um verdadeiro tsunami, que lhe invadia a corrente sanguínea.

Esta mescla foi lentamente percorrendo as suas veias e artérias carimbando a sua passagem com um arrepio que se alonga de uma extremidade do corpo à outra. Aquele era um arrepio quente, ou talvez docemente frio, de uma doçura que parecia quente.

Não o queria, mas não tinha escolha, aquele veneno dominava já o seu corpo e sentado à janela que lhe abria as portas do mar, sonhava, sonhava em câmara lenta, tão lenta que cada imagem, cada rosto, cada palavra, gesto, olhar e sorriso parecia não ter fim, só aquele arrepio, um arrepio frio que o aquecia mais e mais, mais do que alguma vez tinha desejado, continuava a usurpar e a apossar-se do seu íntimo a uma velocidade vertiginosa e inadmissível.

Tinha de procurar um antídoto, um unguento, um comprimido milagroso, um anti-arrepios que o livrasse daquela dor. A dor de uma saudade ausente, de um gostar e não querer, de um não ter e mesmo assim... perder.

Então, como uma brisa, um sopro libertador, que alivia o calor e aquece o ambiente frio, ela aproximou-se, silenciosa, invisível, protegida do seu olhar triste. Colocou-lhe os braços à volta do pescoço e disse-lhe ao ouvido:

- Olá! Aposto que já não me esperavas...



17 de setembro de 2004

O Dilema

Eu sei que disse que me ia embora, nunca disse que nunca voltaria, foi apenas um até logo, um tempo para reflectir. É verdade que todos os dias, invariavelmente, passo por cá, para ver as luzinhas a brilhar, ou só mesmo para matar saudades.

Não é a primeira vez que ameaço ir embora, e talvez não seja mesmo a última (atenção que isto não é o que parece) e não quero também que pensem que ando a fazer bluff só para chamar a atenção, assim do tipo da criança que só faz travessuras para que os pais notem que ela existe.

Não é nada disso, a verdade é que apesar de aquilo que escrevo ser por gosto, por vezes não é fácil manter o ritmo, pois somos absorvidos por outros assuntos e esse é o verdadeiro problema, se por lado o meu estilo não é o post do tipo "yabadabadu" nem o recorte de notícias da imprensa, a escrita dos textos que normalmente publico exigem alguma concentração e introspecção, um olhar atento sobre o mundo que nos rodeia, ou que gostávamos que nos rodeasse. Esse é o espaço que por vezes falta para continuar.

Eu sei que ninguém é obrigado a colocar post’s todos os dias, até porque um blog devia ser para nós, mas após algum tempo, quer se admita ou não, acabamos de alguma forma reféns das "luzinhas", o que implica que, mesmo ao escrever para nós sabemos que A, B ou C está à espera para ler algo e isto torna-se uma espécie de obrigação, que foi precisamente o que sempre tentei evitar, como dizia no primeiro post "por paixão, não por obrigação".

E este é o verdadeiro enigma, descobrir o equilíbrio entre a escrita e a vida, pois tenho compromissos importantes com datas marcadas e disso não posso fugir, pelo que terei que alterar algumas coisas aqui no farol, a começar pela periodicidade dos posts.

Veremos o que conseguirei fazer e se não conseguir, sempre me resta uma solução: Adeus.

Perceberam o meu dilema?


13 de setembro de 2004

Até um dia destes



Obrigado!


Recordação

Chegara invariavelmente atrasado. Não excessivamente, apenas o indispensável para não ser o primeiro, nem o último. Não era seu apanágio ser inoportuno nem espalhafatoso nas entradas, mas a nova filosofia mais liberta, estava definitivamente a influenciar esta nova atitude despreocupada em relação à vida que corre apática aos nossos atrasos, desejos ou medos.

Ela tinha sido a sua anfitriã e agora recordava.

Recordava o seu sorriso quando lhe disse "- Bom-dia", o brilho nos olhos, jovens, levemente cândidos.

Recordava os beijos formais trocados.

Recordava as indicações, claras, simples e precisas que lhe tinha prestado.

Recordava a silhueta de mulher que se escondia sob o manto daquela roupa formal. Os sapatos, pretos, de camurça, o salto invulgarmente alto, as longas calças pretas a refrescar a imaginação com banhos de imagens das pernas que delicadamente resguardavam.

Recordava ainda a forma como balouçava o leve tecido das calças, justas ao cimo, mas largas ao fundo, acariciando a cada passo a doce e cálida pele que tão sublimemente abrigava dos olhares indiscretos.

Recordava a camisola branca, de manga curta, cuja cor contrastava e realçava o tom levemente acastanhado dos seus braços, sinal da perfeita comunhão com o sol de verão.

Recordava a delgada cintura que apertava o olhar em direcção ao discreto e opaco soutien branco sem alças, que com decoro, vigiava discretamente os pensamento mais ousados sobre que maravilhas naturais esconderia, e assanhava sentimentos marcadamente masculinos.

Recordava o cabelo, liso com um risco levemente deslocado à esquerda e forma natural como o prendia atrás das orelhas, procurando camuflar a beleza dos ombros suavemente visíveis sob o generoso decote.

Recordava agora os brincos, duas argolas pequenas, do tamanho de um anel generoso, estilizadas em ouro. Recordava até a pulseira, humilde, sinal de um juventude em progressão para a recta final.

Recordava o leve toque de base e o batôn que desesperadamente tentavam ampliar o brilho de uma beleza que no seu jovem vigor era impossível melhorar.

Recordava o conjunto, o olhar, o sorriso e aquele sinal na face esquerda, pequeno, quase imperceptível, mas ardilosamente intrigante quando pedia para ser beijado.

Recordo isto tudo, recordo-te a ti!


12 de setembro de 2004

Ficção, ou nem por isso?

Li há dias num blog um palavreado sobre ansiedade, precipitações, andar devagar e conversas definitivas. Aquele texto e subsequentes comentários levaram-me a pensar que quando alguém vai com demasiada sede à fonte corre o risco de se engasgar.

Muni-me dos meus sentimentos mais mesquinhos, apelei aos meus institntos sanguinários e decidi empreender uma implacável caça ao culpado. Depois de uma avaliação leviana, como é desejável nestes casos, escolhi três alvos, ou suspeitos: a água, o bebedor e a sede.

Comecei então a congeminar o enredo, a criar os cenários, a fazer investigações e por fim parti para as induções e deduções, algumas lógicas, outras nem por isso.

Apontei como primeiro culpado a água. Era óbvio que se não houvesse água o bebedor nunca se teria engasgado. Tão claro como ela própria e sem qualquer sombra de dúvida ou gosot mais amargo. Mas depois, depois tive pena dela.

Que culpa tinha a água?

Ela que estava ali paradinha, pronto para satisfazer os desejos e necessidade sem pedir nada em troca. Mais, ela até estava ali numa missão altruista, a de assegurar a vida do bebedor.

Foi então óbvio que a culpa era do bebedor. Se este não tivesse sucumbido ao apelo seus sentimentos e impulsos carnais que lhe turvavam a razão, isto é, Se ele não tivesse ido beber a água nunca se teria engasgado. Como era possível não ver isso? Se o bebedor tivesse deixado a água sossegadinha e não tivesse decidido leva-la aos lábios com tamanha sofreguidão e rapidez, nunca se tinha engasgado. Talvez até tivesse conseguido saciar a sua sede, quem sabe?

A sede?

Pois, lembrei então que me tinha esquecido dela. O bebedor só foi ao encontro da água porque tinha sede! Ora afinal a grande culpada era a sede. Ela é que tinha instigado o bebedor a correr em direcção à agua e bebe-la com tamanha vontade, com medo que se acabasse antes de chegar ao fundo do copo.

Parecia resolvido o mistério, não fosse o facto de a sede ser um mecanismo de defesa do bebedor contra...

Foi precisamente aqui, que todo o raciocínio me pareceu uma cópia de uma hilariante farsa trágico-cómica, no binómio politico-jurídico português, em que a culpa morre sempre só e abandonada, apesar de as vitimas gritarem bem alto que elas não tiveram culpa nenhuma.

O resultado, esse, há muito que era definitivo, independentemente das conversas.


11 de setembro de 2004

A Casa da Lagoa (Parte I)

Tinha descoberto o local perfeito para um romântico encontro de amor. Podiam passar ali umas relaxantes mini-férias longe do barulho e da distância que insistia em os manter afastados. A casa, muito pequena junto ao lago e a protecção da espessa vegetação circundante conferia-lhe a privacidade ideal para amar, enfim era perfeita.

Situada junto á lagoa para onde dispunha de um acesso directo, convidava com incrível intensidade a sonhar, um sonho de alguns dias de felicidade plena. Apenas os dois, livres de todo o stress, da sociedade, dos relógios. Tudo ali convidava à evasão, à libertação do pensamento e dos sentidos.

O verde dominava a paisagem, um verde esperança cujo aroma a flores parecia nunca abandonar o olfacto.

O primeiro desafio era conseguir arrendar a casa do sonho. Depois de uma maratona de pesquisas para descobrir um contacto do proprietário, o dono, um senhor com alguma idade que não vivia lá, não se mostrava disponível a ceder aquele pedaço de paraíso entre o céu, a terra e o lago, a um estranho, apesar de ele não gozar aquela maravilha há muitos anos.
Disse com uma segurança que nunca lhe notara em outras palavras, que apesar de pagar religiosamente a manutenção e limpeza da casa a uma família local, na verdade já não usava a casa há oito anos.

Olhando directamente os seus olhos, pareceu ler a dúvida que lhe enbaciava o pensamento relativamente à segurança da sua afirmação e explicou.

- Ainda me lembro como se fosse hoje, daquele verão, o último, que eu e a minha falecida Maria passamos lá. Tínhamos combinado voltar lá no Inverno, com o nevoeiro o lago ganhava um encanto especial, mas não chegamos a voltar. Depois de voltarmos nesse Verão adoeceu e deixou-me... pelo menos até ao nosso reencontro, um dia.

Por isso prefiro dizer que renasceu, nasceu para uma nova vida algures e renasceu em mim sobre a forma de uma doce recordação, que desde esse dia me acompanha a todo o momento e onde quer que vá. Por isso sei que foi precisamente há oitos anos, meu jovem!

Com aquela história e sem se aperceber tinha colocado na sua manga as cartas necessárias para ele fazer batota e ganhar aquela partida. O Sr. António, era esse o seu nome ou simplesmente Tó para os amigos, tinha até esse momento recusado arrendar-lhe a casa. Mas agora com aquelas cartas na manga, bastaram-lhe menos de cinco minutos para conseguir que o Sr. António insistisse em lhe emprestar a casa.

Sim, nunca a arrendaria, mas depois de ouvir a história que ele lhe contou, era o Sr. António que o obrigava a aceitar o empréstimo, sem mais, da casa.

Sentiu que tinha ultrapassado o primeiro desafio com sucesso, no entanto outros, possivelmente mais difíceis, se aproximavam.

Respirou fundo, enquanto se preparava para encarar o desafio seguinte.



10 de setembro de 2004

Monotonia

Ora bolas!

Estive ali a ler o post de ontem e comecei a reflectir (mau sinal!)

Pois na verdade, estas histórias que vos conto são todas muito previsíveis, mesmo antes de começar a ler já se antecipa qual será o final, ou pelo menos, que tipo de final será.

Foi então, que comecei a tentar escrever uma história diferente, uma que tivesse um início e um fim diferentes, mais dramáticos e em que a felicidade e o sonho fossem apenas uma miragem que se ia esfumando ao longo do texto.

Nesse momento atingiu-me a luz do farol, que me iluminou a ideia para uma nova história, que começa assim:

"Partiu sem destino. Apenas uma vontade imensa de percorrer ruas..."

Faltava-me então um final, um final diferente, inesperado, dramático e até talvez, porque não, cruelmente amargo, que poderia ser algo do tipo:

"… e viu como morria, ali naquele instante, nas suas mãos."


Agora vou sentar-me e esperar sugestões de espuma e areia para preencher esta inusitada história de castelos de sonho.




9 de setembro de 2004

A Incerteza

Naquela manhã chegou extemporaneamente ao aeroporto. Mais uma viagem profissional. Chegou de táxi, que o deixou na porta das partidas. Atravessou o hall sem pressas, deixando um olhar mais atento em cada loja com que se cruzava. Aproveitou para entrar no banco Totta para dar algumas instruções. Em seguida dirigiu-se à passadeira rolante acompanhado de perto pelo seu fiel amigo que o seguia para todo o lado, sempre a uma curta distância, o troley. Lá dentro apenas o indispensável para uma curta viagem de negócios. Já se habituara a viajar com pouca roupa, apenas um porta fatos e aquela pequena mala com algumas peças realmente imprescindíveis.

Subiu no tapete e virando à direita dirigiu-se ao balcão da TAP. Era sempre assim, alguém na empresa reservava os bilhetes que depois ia levantar ao chegar ao aeroporto. Destino desta viagem, o Brasil, Rio de Janeiro. Seriam apenas três dias, muito preenchidos, e duas noites ainda indefinidamente livres. Uma não o preocupava, mas a outra...

Era muito cedo, nessa manhã tinha madrugado e chegara ao aeroporto demasiado cedo. Aproveitou para tomar algo na cafeteria. Daquela posição privilegiada ia observando as pessoas, tentando adivinhar o seu destino e o motivo da viagem. Quanto ao seu, não valia o esforço, tendo apenas por companhia a pequena mala e um porta fatos, certamente que o motivo não seria o lazer. O destino esse era mais difícil, hoje era para ali, amanhã para acolá, depois e depois...

No início achou graça àquelas viagens, até fez um diário para ir anotando as milhas que ia percorrendo, mas após algum tempo tornou-se uma actividade desgastante, verdadeira missão impossível para a máquina de calcular que não tinha dígitos para somar tanta milha, foi aí que desistiu.

Bem, a verdade é que tinha grandes expectativas para esta viagem, não propriamente para a viagem, mas para a noite que o esperava no outro lado do atlântico. Correu para o balcão do check-in e anotou mentalmente a porta de embarque "gate 25".

Seguiu, um pouco nervoso, não, não era nervoso, na verdade era mesmo ansioso. Aquela viagem lembrava-lhe uma que tinha realizado uns anos antes. Tinha sido nesse mesmo voo que a tinha conhecido. Cruzaram-se na entrada do avião e logo nesse instante sentiu algo mágico quando os seus olhos transparentes se tocaram, uma espécie de faísca que lançou uma nova luz sobre a sua vida. Numa fracção de tempo infinitesimal, decidira enviar-lhe um sorriso, mas ao qual ela respondeu com a indiferença característica de quem está habituada a receber muitos sorrisos.

Mas não tinha desistido, sabia que teria um voo completo para lhe conquistar um sorriso. Assim foi, simpatia a simpatia, palavra a palavra, sorriso a sorriso, a verdade é que estavam juntos desde então e continuava hoje a sentir a mesma faísca cada vez que a olhava nos olhos.

Por fim, começara o embarque para o voo do Rio. Não era hora para estar com recordações. Mostrou o bilhete e seguiu pela manga de acesso ao avião. À porta uma simpática assistente dava as boas vindas ao passageiros. Olhou discretamente para ela e algo o atraiu nela. Cumprimentou-a e mais uma vez num fracção de tempo que não é admissível quantificar, tomou a opção de lhe enviar um beijo, quase imperceptível.

Não ouve resposta, que desilusão. Pensou se estaria a perder o seu charme com a idade. Optou por ignorar e foi procurar o seu lugar. Sentou-se, retirou umas folhas da sua amiga pessoal, uma pequena pasta, e começou a ler. A viagem iria ser longa e isso dar-lhe-ia tempo para avaliar alguns dos problemas que deveria resolver à chegada, apenas um continuava uma incógnita, a segunda noite.

Por fim descolaram em direcção ao rio e mal o piloto apagou o sinal da obrigatoriedade de usar o
cinto, aproveitou para chamar a assistente de bordo. Pobre assistente, não lhe tinha respondido ao beijo, mas estava decidido a confirmar a operacionalidade do seu charme. E assim foi toda a viagem, após alguns momentos de descanso, sentia aquele desafio de carregar no botão, o que fez uma, outra e outra e outra vez, talvez quem sabe a história se repetisse.

Mas, aparentemente não. Chegou ao Rio, sem conseguir dela nada mais do que uns "sim senhor", "Vou já provenciar", "Faça favor" e "Concerteza". À saída do avião, esboçou-lhe mais um sorriso fatal e murmurou "vou ficar três dias". A resposta foi inaudível, tal foi o silêncio que a boca dela emanou.

Apanhou a sua bagagem e dirigiu-se ao balcão do rent-a-car com que a empresa mantinha um contracto. Lá estava a reserva do carro para os próximos três dias. Saiu, foi buscar o carro e estacionou junto à porta das chegadas. Momentos depois saía a assistente do seu voo, aquela que tinha massacrado durante todo o voo. Esta ao vê-lo, dirigiu-se apressadamente ao carro para onde entrou. Imediatamente atirou-lhe:

- Seu descaradão, não se envergonha de assediar daquela forma uma senhora?

- Claro que não, de outra forma nunca te teria conhecido...

- Tens toda a razão e ainda hoje, quando me lembro, sinto um friozinho que percorre o meu corpo. Aquele foi um dos melhores momentos da minha vida, o instante em que te conheci. Sem ele continuaríamos os dois perdidos à deriva no mar das emoções sem um porto onde nos abrigarmos - Disse ela.

- Foi para ti e para mim, meu porto seguro. - disse-lhe ele enquanto uma das mão segurava a dela e outra lhe acariciava a sensualmente a perna.

- E então? Perguntou ainda ele.

- Consegui! - Disse ela enquanto lhe beijava os lábios - Troquei com uma colega e vou poder ficar contigo as duas noites.

Com aquelas palavras ela tinha dito tudo o que necessitava ouvir para ter a certeza que aquela seria uma viagem mágica.



7 de setembro de 2004

Regresso Às Origens

Deitado no sofá olhava para a dramática cortina de veludo vermelha, que o isolava numa solidão relativa, falsamente encoberto dos olhares ameaçadores que do exterior da janela tentavam trespassar impiedosamente o espelhado dos vidros em direcção ao seu coração.

A mudança tinha sido um decisão longamente ponderada, muito sofrida e concordada, mas agora que olhava para aquelas paredes brancas, os cortinados levemente cinzentos e a grossa cortina de veludo, todo o conjunto, mais lhe parecia um subtil instrumento de tortura da sua alma já muito sofrida.

Tinha decorado aquele espaço da forma mais impessoal possível, começando nos traços desmaiados de violeta que se estendiam pelas paredes em formas que lembravam letras, passando pela alienação que se sentia preencher a união entre as peças que adornavam os parcos móveis que tinha decidido comprar e terminando na descoordenada e frágil harmonia de todo conjunto.

Inconscientemente procurava que aquela ausência de sentido calasse a voz que dentro de si clamava por tranquilidade, por paz e sossego. Estranho e falacioso aquele conforto que se obtém ao olhar caridosamente para o vazio absoluto, para a desgraça alheia.

Mas agora, uma voz pequenina dentro si piscava incessantemente como um farol a avisar do perigo de um naufrágio eminente.

Queria desviar o olhar, mas a superfície espelhada do mar não o deixava ignorar o olhar choroso e saudoso dos momentos vividos com entusiasmo e alegria e nos quais tinha sulcado aquele mesmo mar e vira reflectido nas suas águas a satisfação imensa que o seu rosto exalava e tal doença qual doença altamente contagiosa, infectava todos aqueles que com ele tinham a felicidade de se cruzar.

Não queria, não podia aceitar aquele sentimento, aquela vontade de voltar, de dar um passo atrás, de rodar sobre si e correr em direcção ao passado e do transformar num futuro, um futuro brilhante... simplesmente não podia aceitar, ainda doía, doía demais.

Mas como ignorar aquela luz ali à sua frente, simplesmente não podia, tinha de fazer algo, pois só o simples pensamento de voltar acendia em si sentimentos de alegria, e olhando para o espelho viu avivar-se no seu rosto um luminoso sorriso acanhado, envergonhado por uma racionalidade tortuosa, injusta, falsa e desleal com a sua necessidade de felicidade.

Gostava de pensar que nunca se arrependia das decisões que tomava e tão pouco se importava com que os outros pensavam e aquele era o momento de fazer das palavras, tantas vezes ocas e sem coragem a força que o levaria a rasgar as cortinas, pintar as paredes de azul, escolher umas cortinas cor-de-rosa e adornar as paredes nuas com uns tantos quadros com cores alegres e quem sabe talvez até comprar um espelho...

para nele poder observar o reflexo doce e meigo de um sorriso de felicidade interior.



Pelo Amor de Uma Sereia

Alguém que desejava ler a atribulada história do amor do nosso Faroleiro e da sua Sereia, pediu-me um índice dos 25 capítulos que compõem, até ao momento, este conto.

Aqui está ele, como a luz de um farol que vos iluminará a rota da leitura:

01 - http://o-farol.blogspot.com/2004/06/amanh.html
02 - http://o-farol.blogspot.com/2004/06/luz-da-verdade.html
03 - http://o-farol.blogspot.com/2004/07/o-caso.html
04 - http://o-farol.blogspot.com/2004/07/luz-da-solido.html
05 - http://o-farol.blogspot.com/2004/07/dvida.html
06 - http://o-farol.blogspot.com/2004/07/o-ltimo-flego_07.html
07 - http://o-farol.blogspot.com/2004/07/o-salvamento.html
08 - http://o-farol.blogspot.com/2004/07/carta.html
09 - http://o-farol.blogspot.com/2004/07/luz-da-esperana.html
10 - http://o-farol.blogspot.com/2004/07/revelao.html
11 - http://o-farol.blogspot.com/2004/07/visita.html
12 - http://o-farol.blogspot.com/2004/07/confisso.html
13 - http://o-farol.blogspot.com/2004/07/preparao.html
14 - http://o-farol.blogspot.com/2004/07/disseminao-da-luz.html
15 - http://o-farol.blogspot.com/2004/07/noite.html
16 - http://o-farol.blogspot.com/2004/07/novo-dia.html
17 - http://o-farol.blogspot.com/2004/07/novo-encontro.html
18 - http://o-farol.blogspot.com/2004/07/reunio.html
19 - http://o-farol.blogspot.com/2004/07/soluo.html
20 - http://o-farol.blogspot.com/2004/07/segunda-visita.html
21 - http://o-farol.blogspot.com/2004/07/as-cartas.html
22 - http://o-farol.blogspot.com/2004/07/despedida_30.html
23 - http://o-farol.blogspot.com/2004/08/o-jornal.html
24 - http://o-farol.blogspot.com/2004/08/entrevista.html
25 - http://o-farol.blogspot.com/2004/08/o-final-ou-talvez-no.html

Boa viagem!


Esperança, ou nem por isso...

Navegava em mar revolto. Enormes vagas fustigavam incessantemente a pequena embarcação. Agarrada à frágil segurança que esta lhe proporcionava, tentava desesperadamente manter-se à tona.

A força daquele mar fê-lo compreender a fragilidade da sua embarcação.



Ao longe uma luz intermitente iluminava-lhe a esperança e o desejo de um Porto Seguro, enquanto pensava:

Bolas! Porque é que a vida não pode ser simples?


6 de setembro de 2004

O Telefonema - Uma Continuação (Parte II)

... do outro lado, apenas um silêncio insuportável, pontualmente cortado pelas características interferências da energia estática.

Após alguns momentos a ouvir o eco da sua própria voz que gritava "Estou!", "Tou sim!", sentiu-se engravidar pelo desespero da ausência de germinação na sua alma da luz da esperança, a esperança de que ele não a tivesse esquecido, afinal tudo tinha acontecido há..., há... tanto tempo.

Num momento de clímax desesperativo, sentiu que algo a penetrava sem dor. No seu ouvido uma voz de barítono lançava a semente das recordações e projectava-a para um futuro fértil de emoções e sentimentos.

A melodiosa voz iniciou então a fertilização daquele amor:

"- Olá, sei que não falamos há..., há... tanto tempo, mas por favor não me interrompas, afinal tenho tanto... tanto... tanto para te dizer.

É já muito o tempo, mas não esqueço os teus cabelos que junto ao farol agarravam com paixão o vento e os olhos aprisionavam no seu interior o mar, enquanto tu, tu pisavas a areia e nela deixavas enterrada uma promessa que até hoje não esqueci. Aquela mesma areia que foi o leito da minha paixão durante esta travessia solitária do deserto dos sentimentos amarrados num toque, numa carícia, num beijo que se dá e se recebe com a emoção contida de um amor frágil que caminha com segurança em direcção ao pôr-do-sol...

Não sei que é feito de ti, apenas este pedaço de papel engelhado e gasto de tanto o dedilhar me consolou durante este tempo, o facto de saber que te encontraria no final deste número e talvez a esperança de que ainda podíamos..."

O silêncio que escutava atentamente aquela confissão, nesse momento lançou-se abruptamente sobre as palavras que comeu com frenesim. Faminto, insaciável por outras vozes, outras palavras, ali permaneceu imóvel e vigilante, aguardando que lhe servissem mais uma dose de sentimentos…

Afinal, ainda havia tanto... tanto... tanto para dizer.



A viagem

Sentado lia um livro, enquanto esperava pelo autocarro. Lia atentamente, cada palavra, cada vírgula, cada ponto final, cada silêncio delator, procurando saborear cada pensamento esmeradamente esculpido em cada frase.

Podia até dizer-vos o título do livro, mas não interessa, basta saberem que não era um daqueles que podemos comparar com um prato ultracongelado que se coloca no microondas e está pronto em minutos, este pertencia o outro tipo de "dieta gastronómica".

Aquela rua estava deserta, nem um carro, nem uma pessoa, ninguém passava por ali àquela hora. Apenas uma leve brisa de ar sibilava à sua esquerda e a ténue luz do candeeiro à sua direita lançavam uma luz sobre a escura solidão daquela noite.

Olhou o relógio, já era muito tarde, mas, incrivelmente o autocarro não estava atrasado. Nunca tinha pensado nisso, mas aquele autocarro nunca se atrasava verdadeiramente. Independentemente das horas a que chegava, aparecia sempre pontualmente no momento em que devia aparecer, livre de reclamações ou da tirania da tesoura que no pulso corta impiedosamente pedaços da peça de tecido da vida.

Enquanto aguardava pela sua chegada, pontualmente tardia, leu mais algumas páginas, até que, através dos seus olhos semicerrados o viu aproximar-se, lentamente mas seguro.

Colocou cuidadosamente o marcador no interior do livro que fechou e com a pouca visão que ainda lhe restava enquanto o seu cansado olhar fixava a frente do autocarro. Seguindo algo que parecia escrito em alemão, lá estava o seu destino em letras verdes brilhantes "Sono". Sem reclamar da longa espera subiu para o autocarro e procurou um assento. Não foi difícil, pois estava vazio, como se o viesse buscar apenas a ele. Procurou o melhor lugar, pousou o livro a seu lado e com movimentos lentos procurou ajustar o seu corpo ao espaço disponível, ciente que no final da viagem o aguardaria um novo dia.

Os seus olhos semicerrados adormeceram embalados pelo balançar do cansaço que alimentava o motor do veículo que agora o transportava. Seria possível que tivesse ainda de fazer um transbordo para o comboio do sonho, mas não tinha a certeza, nunca havia certeza, às vezes, mesmo depois da viagem, a dúvida permanecia, outras havia em que recordava com uma surpreendente nitidez a viagem nas carruagens do sonho.

Naquela noite todos os horários foram cumpridos e assim, na paragem junto à gare do sonhos, viu que na linha do sonho, um comboio permanecia imóvel, atrelado a diversas carruagens, cor-de-rosa, amarela, verde, vermelha, branca e mais para o fundo a inevitáveis carruagens cinzenta e negra.

Sem pensar, sem consciência das suas escolhas, tomou lugar numa das carruagens. Nem reparou qual a cor da carruagem, mas essa também não era uma escolha que lhe estivesse destinada, esperava apenas que lhe proporcionasse uma viagem calma, agradável com suavidade e conforto até ao seu destino.

Lá dentro viajavam outras pessoas, mas uma atraiu a sua atenção. Não lhe conseguia ver o rosto da posição onde se encontrava, mas algo o fazia tremer sempre que a olhava. Não compreendia a atracção que sentiu mal pousou os olhos nela, a cor da sua pele, os cabelos, a forma como estava vestida, as pernas que se escondiam debaixo de umas calças de corte perfeito e a elegância da silhueta. Tudo junto gerava nele aquele tremor tipicamente alcoólico, que se alguém alguma vez lhe descrevesse diria tratar-se de um sonho. Sonho, era curioso, mas esse era mesmo o nome daquele comboio - que coincidência! Pensou.

Procurou o melhor lugar para apreciar a viagem, mas sem nunca a perder de vista. Passados alguns instantes decidiu tentar uma aproximação. Sem se mexer significativamente da sua posição na carruagem, procurou acercar-se a ela. Contudo apesar dos seus intentos, nunca conseguiu coroar de sucesso os seus desejos. Cada vez que aproximava começava a ficar mais e mais e mais nervoso, o seu coração batia descompassado e a sua cabeça perdia o sentido da orientação e então, então parecia que ela se afastava dele, que na sua desorientação, não conseguia perceber qual a direcção seguida. Estava perdido!

Foi então, que uma travagem brusca o atirou para fora do assento naquela carruagem do comboio, que percorria até aí sem sobressaltos, a linha do sonho.
O grito estridente do despertador avisava para a existência de um obstáculo na linha.

Terminava ali a sua viagem. Abriu os olhos e viu na luz da manhã, que obstinadamente invadia o quarto, um reflexo pálido da viagem daquela noite.

Depois rodou, sobre si na cama abraçando-a. Colocou a mão sobre o ventre dela e suavemente aproximou os lábios do ouvido. Então carinhosamente sussurrou:

Esta noite sonhei contigo.


4 de setembro de 2004

Não era justo...

têm razão, não era e também não tenho pretensões a mago. ;)

(Este é o terceiro)


Tinha de acender uma luzinha sobre o assunto.


Avaliações...

Esta noite (ontem) dei por mim a tentar fazer uma absurda avaliação dos textos que publico aqui, no farol. É verdade, como juiz em causa própria, queria avaliar imparcialmente os textos, como se isso fosse possível...

Sei que algumas pessoas lêem (mais ou menos anonimamente) com regularidade aquilo que escrevo e se lêem é porque, em princípio, gostam, mas qual o valor destes textos?

Não vale a pena conjecturarem, eu assumo: estive a ver os ídolos! Gosto de o fazer, munido da mais fina ignorância musical, não obstante vários anos de solfejo de piano, a verdade é que desafino com muito profissionalismo, mas gosto de ver se consigo antecipar a opinião dos ditos "experts".

Foi aí que dei por mim a pensar no que escrevo e na sua qualidade. É tão fácil cair no engodo de pensar que cantamos…, perdão, escrevemos bem (ou menos mal), quando na verdade aquilo que colocamos no ar não passa de uma desafinada interpretação de um sentimento bem mais belo e harmonioso.

Que fique bem claro que não tenho ambições literárias, nem este blog representa um trampolim para voos mais altos, muito longe disso. Aquilo que escrevo, escrevo porque gosto e expressa de alguma forma a minha experiência de vida (My Way) e a forma como olho o mundo à minha volta e nada mais.

Feito o esclarecimento, passemos adiante. Também é fácil acreditar que o simples facto de outros nos lerem com regularidade atribui um selo de qualidade ao que expressamos através da nossa escrita, quando na verdade isso não é inteiramente... verdade.

Não quero com isto lançar qualquer sombra de desconfiança sobre a luz que emana das luzinhas que muito carinhosamente alguns de vocês deixam acesas no farol, não é nada disso, simplesmente olho-vos como amigos e como tal acredito que vós pode germinar a semente da parcialidade.

Um júri imparcial e consciente da sua missão foi por mim ansiado. Alguém que, com uma voz abundante de autoridade, dissesse: "Tu não escreves nada".

É claro que essa seria apenas a opinião de Um júri, e cujo valor não ultrapassa isso mesmo, o de uma única opinião individual, ainda que, de um grupo.

Pensarão vocês:

- Mas qual o interesse disso se gostas daquilo que escreves? Quem não quer ler não lê e pronto!

Sei que estão carregados de razão, se gosto de escrever e se vocês gostam do que escrevo, para que necessito eu um júri? Uma mera avaliação que vale o que vale e que no fundo, olhando com muita atenção, percebemos que vale nada, pois as opiniões são como a água de um rio.

Com sinceridade vos confesso, não sei!

Apenas sei que são todas estas dúvidas que me levam, alguns dias, a pensar em apagar de vez a luz deste farol, o não saber se esta luz realmente ilumina a rota de um porto seguro.

Alguns de vocês têm procurado dificultar a decisão enviando-me belíssimas e inspiradoras imagens de faróis, as quais, desde já publicamente agradeço, tal como agradeço os incentivos a ficar, num post ali mais abaixo.

Alguém que muito estimo dizia-me há dias que o farol tinha conquistado o seu lugar por mérito próprio. Sem querer duvidar das suas gentis palavras, fico no entanto a pensar que lugar será esse.

Para finalizar, dizer-vos que neste post decidi retirar os comentários. Não é que tenha medo de ouvir a vossa voz de jurados (para isso sempre têm a caixainha de correio do farol) , simplesmente não quero que pensem que isto é uma lamechice, uma estratégia de marketing, um pedido de afago ou palmadinha nas costas, não é nada disso.

Este texto é apenas o quadro onde pintei, ontem à noite, uma imagem clara e transparente daquilo que penso e sinto, somente isto!

Veremos o que penso amanhã...


125 azul

... Viva o espaço que me fica pela frente e não me deixa recuar
Sem paredes, sem ter portas nem janelas
Nem muros para derrubar

Talvez um dia me encontre
As sim hmm talvez me encontre
Du-ru du-ru-ru- ru Du-ru-ru-du- ru Du-ru-ru- ru

Curiosamente dou por mim pensando onde isto me vai levar
De uma forma ou outra há-de haver uma hora para a vontade de parar
Só que à frente o bailado do calor vai-me arrastando para o vazio
E com o ar na cara, vou sentindo desafios que nunca ninguém sentiu

Talvez um dia me encontre
Assim talvez me encontre

Entre as dúvidas do que sou e onde quero chegar
Um ponto preto quebra-me a solidão do olhar
Será que existe em mim um passaporte para sonhar
E a fúria de viver é mesmo fúria de acabar
...


3 de setembro de 2004

O Telefonema - Uma Continuação (Parte I)

Da minha amiga Catarina a Grande Sonhadora recebi este cristal, uma pedra preciosa multicolorida, que em conjunto com a Luz do Farol inunda de novas e suaves tonalidades a história do telefonema, que parece ainda não querer chegar ao fim, mas também não é verdadeiramente uma surpresa, afinal já não falavam há..., há... tanto tempo e havia tanto, tanto, tanto para partilhar.

No primeiro minuto que teve de profundo silêncio e de pura descontração pegou no telefone para lhe telefonar, mas aquele compasso de espera, aquele sinal que nunca mais dava lugar à sua voz, rouca e forte, fê-la pensar na possibilidade de Ele se ter arrependido, e por isso deixou-lhe uma mensagem aparentemente segura e sem hesitações, afinal o facto de não estarem juntos há..., há... tanto tempo não significava, de todo, que todos os momentos passados a dois se tivessem desvanecido e perdido no ar.

Imaginava-o mais velho e mais maduro embora ainda com aquele eterno sorriso tímido de criança, e ela também tinha crescido, desde esses longínquos momentos que não ouvia o som das suas gargalhadas e o tilintar dos seus sorrisos no seu ouvido. Era carinhoso mas incrivelmente inseguro, e quando ela lhe pediu aquele passo, quando estava quase quase preparada para lhe prometer a felicidade eterna, ele fugiu, fugiu e encerrou-se naquele farol. Aquele farol que um dia conhecera, aquele lugar iluminado onde um dia Ele lhe dissera:

- "Dá a volta a este farol e marca o limite do meu espaço com as tuas pegadas, para que quando eu não queira sair as veja sempre, e para que quando eu entre, entre com um pouco da areia que me deixaste pisada por ti.".

E naquela noite, naquela noite mais bonita que todas as outras ela pisara a areia circundante do seu farol, não sabendo que lhe estaria a delimitar o tamanho do Mundo.

Mas afinal já tinha sido há..., há... tanto tempo e Ele talvez já nem se lembrasse disso, nem da areia, talvez nem tivesse sequer já o farol por quem Ela um dia, se tivera apaixonado. Perdidamente.

Sentada no parapeito da janela não deu pelo tempo passar. Não reparou nas colegas que entretanto já tinham saído, nem na quantidade de telefonemas que havia recebido, tudo porque estava centrada naquele maldito telemóvel sofisticado, que só se pedia que tocasse.

E ele tocou. Do outro lado da linha...


O Telefonema (Um final possível)

Sentiu um enorme peso sobre o seu coração, uma lápide que o encerrava numa escuridão solitária. Simultaneamente sentiu um tremor no lado esquerdo do peito, ema espécie de palpitar apressado, uma arritmia cardíaca. Sentiu-se fraquejar e abruptamente deixou cair o telefone que segurava e de onde provinha aquele implacável Pii..pii..pii..pii..pii..pii..pii..pii

Uma nuvem sombria atravessou movida por ventos alucinados e sem pensar dirigiu a sua mão direita para o interior do casaco antracite procurando suster sem sucesso aquele pulsar desenfreado. A mão reapareceu momentos depois, após ter recolhido no bolso especial do seu casaco de marca o telemóvel que continuava a vibrar incansável.

Sentiu crescer dentro de si emoção, num crescente cadenciado com o vibrar do pequeno aparelho, enquanto pensava se era ela que lhe ligava.

Só podia ser, por isso o telemóvel dela estava impedido.

Com a inigualável habilidade de um acrobata rodou o telemóvel entre os seus dedos, de forma a poder traçar uma linha recta perfeita, sem curvas nem cortes, entre os seus olhos e o visor fluorescente, de onde a calma e a tranquilidade que ansiava despontaria. Traçou com o olhar a linha imaginária que foi morrer no interior do vidro plástico transparente.

Procurava um nome, um nome feminino, mas no mesmo ponto onde a linha tinha morrido, sentiu extinguir-se também a esperança e a emoção que, apenas à instantes o tinham atingido de forma avassaladora. No fundo iluminado do vidro de plástico, somente um número - um número anónimo - igual a tantos outros números anónimos, sem rosto, sem voz, sem alma, só um número desconhecido. Não era ela!

O telemóvel, desesperado, continuava a sua modesta e inútil tarefa de captar a sua atenção, todo ele mexia. Mas os olhos, já revirados, foram ao encontro da luz ténue do final da tarde que transpirava da janela nas suas costas.

A cadeira girava sobre o eixo que a equilibrava sentada. Naquele momento de desespero, desejou que aquela base estável de descanso o engolisse, como se de areias movediças se tratasse, as mesmas que já tinha sentido momentos antes, mas agora estivessem por fim a cumprir a promessa de guardar no seu interior a sua angústia, uma mágoa que não desejava a ninguém, a dor de saber que não somos bem-vindos.

Com os olhos a semear vida, no chão que fugia a seu pés, pousou o telemóvel em cima da secretária e fitou a sala vazia à sua volta. Era a dura realidade da sua vida, uma vida cheia de vazios, de formas, cores e tamanhos diferentes e que se vão encaixando uns nos outros até preencherem por completo uma vida, para no fim darem lugar a outro vazio e a outra vida.

Sem pressas começou a recordar os momentos que tinham passado juntos, pequenos fragmentos de um vazio maior que sempre sentiu repletos de sentimentos, sorrisos, risos, beijos e alegria. Gostava de recordar. Fazia um esforço para lembrar todos os momentos da sua vida, mesmo os maus. Tentava evitar que o tempo, aquela criação imperfeita do homem transformasse aquilo que deveria ser sempre presente em passado histórico, aquele de que apenas os livros são memória e testemunha.

Com os braços apoiados na secretária e a mãos cruzadas uma sobre a outra, começou a sentir-lhe o cheiro, uma fragrância de mulher. Percorreu-lhe com os dedos a face, tocou-lhe levemente os lábios e acariciou-lhe o cabelo. Dos seus olhos bebeu a luz, uma luz intensa, mas ao mesmo tempo, carinhosamente suave e doce.

Conjuntamente e incrédulo sentiu-se invadir por um sentimento de dúvida e perplexidade que ia crescendo em direcção a uma raiva contida. Uma raiva que inicialmente dirigiu para ela, ela que não tinha querido falar com ele, mas afinal já não falavam há..., há... tanto tempo.

Depois sentiu a raiva mudar de direcção e dirigir-se a ele Ele que tinha deixado que a sua vida se enchesse de vazios sem nunca o ter combatido com a coragem, a bravura e a força que sempre tinha demonstrado possuir para outras batalhas. Talvez fosse esse mesmo o problema, aquela guerra, uma guerra que era só sua, onde cada batalha era travada em solidão… ele contra ele. E contra ele pouco ou nada podia fazer!

Prestes a rebentar ouviu um plim, plim, sonoro que ganhou vida no telemóvel solitário e abandonado.

O anónimo tinha deixado uma mensagem.- pensou! Não interessa.

Esteve mais uns instantes a aplacar a ira do outro ele e depois a curiosidade chamou por ele, queria saber quem era o anónimo.

Resgatou o telemóvel do seu cativeiro de solidão e observou a mensagem inscrita a letras negras:

"Tem uma mensagem nova, deseja ler?"

Sem pensar pressionou o OK, obtendo então a mensagem. Não era o anónimo, esta tinha um rosto, uma voz, uma alma, um nome de mulher. O dela.

Por fim leu:

"A areia espera ansiosa pela marcas que seguem paralelas. Liga-me"

Sentiu que a embarcação tão maltratada pelo fustigar constante de um mar tumultuoso de sentimentos tinha sido atingida pela luz do farol.



Poderia agora, em segurança rumar a um porto seguro.


Fascínio da Luz

Luzes
Luzes frias
Que nos tocam
Nos aquecem
Nos alimentam
Nos transformam.

Luzes
Luzes claras
Cintilantes
Transparentes
Ardentes.

Luzes
Luzes Raras
Inquietantes
Escuras
Sombrias
Luzes que enganam.




2 de setembro de 2004

O Meu Caminho

Como o farol, que mesmo no meio das grandes tempestades se mantém ali firme, seguro de si, do seu papel e da missão que tem de cumprir, também gosto de fazer as coisas à "minha maneira".


(Este é o segundo)

My Way
(Frank Sinatra)

And now, the end is near,
And so I face the final curtain.
My friends, I'll say it clear;
I'll state my case of which I'm certain.

I've lived a life that's full -
I've traveled each and every highway.
And more, much more than this,
I did it my way.

Regrets? I've had a few,
But then again, too few to mention.
I did what I had to do
And saw it through without exemption.

I planned each charted course -
Each careful step along the byway,
And more, much more than this,
I did it my way.

Yes, there were times, I'm sure you knew,
When I bit off more than I could chew,
But through it all, when there was doubt,
I ate it up and spit it out.
I faced it all and I stood tall
And did it my way.

I've loved, I've laughed and cried,
I've had my fill - my share of losing.
But now, as tears subside,
I find it all so amusing.

To think I did all that,
And may I say, not in a shy way -
Oh no. Oh no, not me.
I did it my way.

For what is a man? What has he got?
If not himself - Then he has naught.
To say the things he truly feels
And not the words of one who kneels.
Let the record show I took the blows
And did it my way.

Yes, it was my way.


E assim vou trilhando... o meu caminho!


O Telefonema (Parte II)

Enquanto aquele desesperante piiiiiiiiiii lhe invadia compassadamente o ouvido, o seu pensamento divagou embalado pela espera.

Tentava imaginar que tipo de toque lhe teria atribuído ela. Seria algum toque especial, ou simplesmente um toque banal, igual ao de todos os outros contactos indiferenciados da sua agenda telefónica. Sabia que ela tinha um telefone todo sofisticado, daqueles que só lhes falta mesmo falar, ou nem isso, pois até parece que falam, quando está alguém em linha do outro lado.

Começou então desfile de toques na sua imaginação. Talvez um prelimpimpim prelim prelim prelimpimpim, ou talvez um tiriritiriri, tiriri titi, ou até quem sabe um daqueles magníficos toques polifónicos, quem sabe uma música romântica...

A sua imaginação flutuava entre notas musicais organizadas em torno de diversas escalas musicais, mas o maravilhoso som do seu pensamento foi subitamente interrompido por uma voz feminina:

"O telemóvel não…"

Nesse instante sentiu que se afundava na cadeira, como se areia movediça o tivesse agarrado e puxava-o lentamente para uma prisão sem grades.

Lentamente pousou o telefone,



enquanto semicerrava os olhos numa expressão de desespero e dor. Aquele que seria o seu porto seguro, a sua salvação, o seu farol que o guiaria através do cansaço desse dia e lhe proporcionaria a sensação de liberdade, conforto, de pertença e de segurança que necessitava estava... simplesmente não estava lá.

Voltou o olhar agonizante para o ecrã do computador, mas logo uma luz resplandecente que desprendia do sorriso que embelezava o rosto que preenchia o fundo do seu ambiente de trabalho desferiu o estocada final, aquela que faria o sangue salgado libertar-se e correr no seu rosto. Um rosto triste, fatigado que reflectia a fraqueza que o assolava naquele instante e que era fruto da solidão, do isolamento que apenas encontrava par na solidão sofrida pelos faroleiros nos longínquos e isolados faróis.

Sem pensar forçou o estalar de mais um “clique” na ponta do dedo, como se isso o fosse confortar.

Onde estaria ela? - Pensou ele.

Ela que raramente se separava do seu telemóvel, era quase uma "telemóveldependente", uma viciada em comunicação. Teria visto o seu número e não tinha querido atender? Afinal já não falavam há..., há... tanto tempo.

Pensou em tentar novamente. Olhou fixamente para o telefone à sua frente e num gesto irreflectido, tocou a tecla de remarcação. Desta vez o enigmático sinal que todos os pensamentos, duvidas e ilusões permite e todas as esperanças alimenta tinha-se transformado num:

Pii..pii..pii..pii..pii..pii..pii..pii..pii..pii..pii..pii..

Definitivamente ela estava lá!


1 de setembro de 2004

Um Piscar de Luz

Apenas para deixar uma luzinha para alguém que voltou com a Maré de Setembro.




É bom ter-te de volta!


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