30 de outubro de 2004

Palavras Ao Vento

Para ser sincero, hoje tinha pensado escrever a segunda parte do encontro, mas por caprichos da inspiração saltou-me ao pensamento este texto de palavras ao vento e não resisti. Amanhã, ou depois, conto-vos como terminou o encontro.



Palavras
Palavras soltas ao vento
Palavras que nunca te direi
Palavras que nunca ouvirás
Palavras livres
Palavras com asas
Palavras que voam presas no meu pensamento
Escondidas da minha voz.

Palavras
Palavras sem som
Luzes sem cor
Palavras fortes
Palavras duras
Palavras belas
Palavras sensíveis
Palavras de amor
Apenas isso.

Palavras
Palavras sem actos
Palavras que deambulam
Perdidas no meu pensamento
Apenas e só porque
Não te conheço.



28 de outubro de 2004

O Encontro (Parte I)

Viu-a pela primeira vez numa húmida manhã de Outono.

Tinha saído de casa cedo. A chuva miudinha molhava seriamente aqueles que se atreviam a desconfiar da sua capacidade de encharcar desprevenidos ou simplesmente descuidados.

Percorria, sem rumo ruas da cidade que não se lembrava de ter alguma vez percorrido. Procurava uma inspiração, algo que lhe acalentasse a alma e lhe iluminasse os melancólicos, sombrios e húmidos dias de Outono. Sentia falta do sol, das esplanadas, dos longos passeios nocturnos, da vida que parecia florescer a cada esquina nas brincadeiras das crianças. Agora, o frio e a chuva tinham tomado conta dos canteiros, das esplanadas vazias e esquinas transformadas em desertos de silêncio.

Apurou o ouvido e pareceu-lhe ouvir coaxar. Parou. Imediatamente o som pareceu dissolver-se na chuva, que tinha, naquele instante, aumentado de intensidade. Afinou mais uma vez o ouvido, mas apenas conseguiu distinguir um leve som, característico da balbúrdia da cidade que se espreguiça lentamente.

Resignado com a perda de mais um sinal de verão, deu mais um passo e ouviu-o novamente. Imóvel olhou para o chão a seus pés e lentamente fez um movimento de flexão do sapato que logo coaxou. Afinal era ele quem coaxava. Deu uma gargalhada ao perceber como a sua imaginação o tinha traído inocentemente, mas eram aquelas coisas simples, encontros fortuitos com pessoas, situações ou simples sinais, que tantas vezes o transportara para outras realidades.

Rindo da sua própria tolice, seguiu pela rua coaxando até que do outro lado da rua um encontro fortuito dos seus olhos com letreiro grande e antigo, fez a sua mente voar em direcção ao passado. "Leitaria Nacional", dizia o letreiro. À distância e pelo vidro, aquela leitaria parecia saída do século passado. O mobiliário e a decoração respeitavam os códigos de uma época que não era a sua, mas que aprendera a distinguir pelas palavras escritas, pelo testemunho de outros frequentadores daqueles refúgios. Sentiu curiosidade em entrar e deixar que o aroma do passado lhe invadisse a imaginação, deixar-se impregnar pelo espírito de todos aqueles que antes dele, ali tinham deixado a sua marca, ainda que invisível.

Atravessou a rua, pisando as riscas alternadas brancas e pretas da passadeira que alguém, ali tinha estendido. Aproximou-se da enorme montra e verificou que havia uma mesa livre, mesmo ali, junto ao vidro. Gostava particularmente de se sentar junto ao vidro, De ali podia observar como as pessoas corriam para nenhum lugar, ao mesmo tempo que a chuva cada vez mais intensa e fria, lhes ia torrando a paciência. Era uma espécie de janela aberta para um aquário onde os peixes se movem, aparentemente sem sentido, pelo menos para quem olha do lado de fora. Por vezes era assaltado pela dúvida de saber de que lado estava ele, se no interior do aquário ou no exterior. Mas também pouco interessava, afinal o interior apenas o é para quem pensa estar dentro, ao mesmo tempo que o exterior apenas o é para quem pensa estar fora. Aquela era uma dúvida filosófica e naquela manhã não se sentia tentado a filosofar.

Procurou no interior abrigo daqueles pensamentos e instalou-se na mesa junto à montra. Com a manga do casaco abriu um buraco na humidade do Outono que se instalara no interior do vidro, aproveitando também ele, o calor da vida. Pela janela aberta na névoa que cobria o vidro reparou na livraria no outro lado da rua. Também ela parecia saída de outra realidade. O seu aspecto rústico e até o nome – "Resende Livreiros" - remetiam para outro espaço e outro tempo. Tinha um ar British, clássico, talvez até antiquado, mas elegante e sóbrio, característica que lhe era conferida pela madeira com que tinha sido maquilhada a montra.

E foi aí, junto à montra da livraria, que a viu pela primeira vez, numa húmida manhã de Outono.


25 de outubro de 2004

O Segredo do Faroleiro

Esta história, como terão oportunidade de ver, foi ilustrada como várias imagens, todas elas soberbas, de um local que nunca tive a oportunidade de visitar, mas que me encantou, quando o vi pelo olhos da Riacho, a quem desde já agradeço a amabilidade na cedência das maravilhosas e inspiradoras fotos.


O Verão terminara. As nuvens escuras como a noite ameaçavam abater-se sobre o farol. O vento frio que atacava em fúria os vidros e a praia deserta, ao longe, não deixavam espaço para a imaginação: o Verão morria às mãos implacáveis do Outono. A luminosa face do mar mudava de cor, dia após dia, cada vez mais soturna e fria, moldada pelas correntes frias de outras latitudes.

Chegara a hora de partir. Todos os anos por esta altura aproveitava para gozar as merecidas férias. Alguns amigos já lhe tinham dito que não compreendiam a escolha daquela época para as suas férias, mas eram motivos que só ele compreendia e não lhes queria confessar.

Aquela recusa em partilhar a motivação da sua preferência tinham já sido alvo de muito falatório e especulação. Momentos houve em que teve vontade de gritar bem alto “Gosto de ir de férias nesta época porque…”, mas depois começou a encontrar naquela aura de mistério uma certa graciosidade e deixou-se seduzir pelo encanto da curiosidade que despertava nos outros, como alguém dissera: o silêncio é de ouro. Agora sabia que além de ouro, poderia também ser misterioso, cómico, curioso e até mesmo cruel.

Desceu as encaracoladas escadas do farol, enfiou as últimas peças de roupa na mala. Correu muito vagarosamente para a porta. Fotografou com o olhar o lar que agora abandonava e fechou a porta. Esta gemeu de dor quando a chave se retorceu no interior da fechadura. O mar exalava um hálito frio e húmido varria o areal. As areias soltavam-se para os seus braços e vogavam soltas, indo espetar-se no seu impermeável, como minúsculos punhais atirados por um pouco talentoso artista de circo.

Lançou um último olhar para o seu companheiro de Verão, agora enfurecido, transtornado por uma loucura, que sabia ser, apenas a prazo.

A viagem, longa, levava-o a outras paragens. Não ia ao encontro do Verão noutras paragens, como muitos inconformados com o seu silêncio alvitravam, antes pelo contrário, ia ao encontro do Outono, de um Outono frio que era a extensão do seu Verão.

O seu corpo voava em direcção ao refúgio, onde cumpriria mais uma vez a sua missão, quando a sua imaginação se cruzou com um bando de patos que se dirigia ao sul, à procura do conforto do sol. Enquanto eles se afastavam do seu pensamento, sentia o seu corpo aproximar-se da terra. Estava sem dúvida a chegar ao seu destino, o avião iniciara a descida em direcção a terra firme, enquanto o bando de patos abanava ritmadamente as asas, parecendo repetir vezes sem conta um terno adeus.

Com o pensamento já em terra firme, correu como uma criança desesperada em direcção ao rent-a-car. Freneticamente assinou o contrato e saiu sem demoras. Na cidade as pessoas corriam em várias direcções alheias ao misterioso faroleiro. Para elas, ele era mais uma pessoa que conduzia um carro. A aura de mistério que o envolvia e o segredo da sua viagem tinham desaparecido, esvoaçado com os patos em direcção ao sul. Para aquelas pessoas ele ara apenas mais um alguém de nome ninguém, com alegrias, tristezas, dores, encantos e desencantos, mais um número de segurança social, um simples número de bilhete de identidade. A seu lado as pessoas corriam, alheios ao invulgar segredo que o tinha conduzido até àquela terra de gente estranha, mas ao mesmo tempo, tão igual a si próprio.

Por fim abandonou a cidade. A paisagem paralela à sua caminhada corria agora à mesma velocidade do carro, pintada a cores mais quentes e comparáveis às do Verão que lhe tinha fugido, amedrontado pelo Outono. Ao fundo o sinal, amarelo, da cor do sol quente de verão, avisava que estava a chegar ao seu refúgio.

Salpicando a estrada, gotas de sangue de um Verão moribundo, desfaziam qualquer engano: ele estava ali. Era ali sem dúvida que ele, o Verão, se refugiara. Sabia que não tinha desistido, apenas se tinha retirado para se recompor e ganhar forças para uma nova investida no próximo ano. Tinha a certeza que como ele, o Verão, nunca desistia.



Percorreu com impaciência os últimos metros que o separavam da casa que ocupava religiosamente todos os anos, naquele recanto perdido do bulício da sociedade dita civilizada. A seu lado os sinais da sua presença multiplicavam-se num misto de cores quentes, sarapintadas aqui e além pelo verde esperançoso dos seus olhos.



Era o reflexo da tristeza de partir pintada a vermelho sangue, medicada por tons de verde-mar, para lhe recordar o lar onde haveria de voltar. Observou como aos seus pés duas crianças brincavam, a sua alegria e indiferença ao penar do Verão que agora se extinguia. Aquele quadro recordou-lhe como por vezes as pessoas conseguem ser insensíveis ao sofrimento daqueles que a seu lado se extinguem sem uma lágrima, num sofrimento mudo e escondido. Aquele quadro recordava-lhe os motivos que o levavam ali todos os anos e que originara aquele clima de mistério que se desenhava no pensamento dos seus amigos, quando todos os anos anunciava a sua partida. Se eles soubessem, se ao menos imaginassem…

Mas a inocência daquelas crianças não lhes permitia ainda, felizmente, compreender todo o sofrimento e miséria que a seu lado vai crescendo, às mãos de uma sociedade cada vez parecida com o Inverno que o Outono agora anunciava. Teve um desejo utópico, desejou até, que nunca tivessem necessidade de conhecer o infortúnio da desgraça e a mesquinhez que sempre a acompanha.

Esvoaçou o olhar um pouco mais para a frente, onde podia agora vislumbrar já o seu abrigo de Inverno.



Discretamente abrigado nos braços ainda soalheiros do verão, sensualmente vestidos de amarelo, laranja e vermelho, sobressaía o branco puro da casa. Ao pés do abrigo via como o rio tinha já engrossado, com as lágrimas de solidão do Verão, que inconsolável deixava escapar de pesadas e escuras nuvens que lhe turvavam a vista, incomensuravelmente inchados pela tristeza de ter abandonar os corpos semi-nus e a roupas leves com que gostava de presentear todos aqueles que com ele brincavam, partilhando sentimentos cálidos, por vezes, até tórridos que noutro momentos não tinham espaço para nascer e crescer. Aquelas sensações morriam agora, ali, sufocadas sob o peso de grossas camisolas de lã; secas dentro de roupas impermeáveis à liberdade de comunicar sinais de paixão; presas em casulos de pedra, amedrontadas pela fúria do manto cinzento escuro que cobria o inspirador azul celeste.

Parou o carro e percorreu lentamente o chão coberto dos sinais da vida que agora se extinguia. O sangue multicolor do verão espalhava-se sobre o tapete verde da esperança e já o cobria quase na totalidade. Pelo matiz das cores verificou que o fim se aproximava mais rapidamente que noutros anos. O tom castanho profundo de alguns resquícios da hibernação anunciada denotava que já ali estavam há algum tempo, que o doloroso processo de sacrifício do Verão já tinha começado há muito.




Um pouco mais à frente ajoelhou-se junto ao rio de lágrimas do Verão e ficou a observar como este levava para longe os vestígios do padecimento. Pensou como era curioso aquele fenómeno. Lavava-se o sangue e acabava o sofrimento, pelo menos aos olhos daqueles que não padecem da dor ou não sentem a dor alheia como sua.

Era verdadeiramente admirável aquele Verão e o seu altruísmo. A forma como ajudava a alimentar o esquecimento da sua própria dor, que apagava da memória daqueles com quem tinha convivido durante longos meses partilhando a sua imagem doce e sensualmente quente. Chamava ainda o vento para lentamente arrancar de cima se si o peso, agora morto, do sangue que alimentou a frescura de tantas pessoas, que à sua sombra retemperaram, também elas, as forças para enfrentar o seu destino.



Continuou a pé até à base da escadaria que conduzia à casa.

Lá estava ela, bem no alto, a casa na qual passaria os próximos momentos cumprindo escrupulosamente a missão que lhe tinham confiado muitos anos antes. Tal como o mistério da sua partida todos os anos matraqueava a cabeça dos seus amigos, também uma luzinha de cor indefinida continuava a piscar na sua cabeça, após todos estes anos.



Na verdade nunca tinha compreendido inteiramente a sua escolha para aquele trabalho, não possuía nenhuma qualificação ímpar, nem nunca tinha demonstrado uma aptidão singular, um dom especial, mas tinha sido ele o escolhido. Talvez não houvesse uma única explicação, nem sabia bem porque teria de haver uma explicação, afinal na sua experiência no farol tinha aprendido que há coisas que não se explicam e quanto mais se tenta inventar explicações, maiores as dúvidas e cruzamentos de contornos incertos e por vezes perigosos.

Bem mas ali estava ele para cumprir a sua missão. Afastou da sua mente as divagações pseudo-filosóficas e concentrou-se em subir rapidamente as escadas. No cimo, colocou a mão no bolso direito das calças, de onde extraiu um molho de chaves ordenadamente acondicionado num estojo de pele. Procurou a mesma chave com que guardara a sua vida no farol e abriu a porta de uma nova vida, ali, longe do seu farol.

Lá dentro tudo continuava igual. Ali parecia que o tempo tinha ficado congelado pelo frio do Inverno anterior. Até o pó continuava suspenso no ar, esperando que a porta se abrisse para se poder depositar sobre a parca mobília que conferia o aspecto de um lar àquele espaço. Ao fundo encarou com a fotografia do seu farol que ali tinha pendurado há muitos anos, a quando da sua primeira viagem. A cada um dos lados, dois quadros de nós de marinheiro recordavam-lhe a memória de dois bons amigos que tinham partido há muitos anos, junto com o Verão, mas que ao contrário deste nunca tinham voltado.

Pousou a singela bagagem no chão, voltou as costas ao pó que corria agora, alegremente, entre os móveis, alimentado pela brisa fresca que entrava pela porta aberta ao mundo.

Saiu em direcção ao local de onde deveria cumprir a sua missão.



O seu posto de vigia, que na verdade era mais de um, era uma estrutura construída pelos seus antecessores na função. Uma estrutura em pedra com várias janelas que permitiam contemplar o mundo à sua volta.

Ligeiramente protegido da crueldade do Inverno que sempre sorrateiramente se aproxima, podia de ali ver com incomparável clareza o Verão que à sua volta se contorcia em dores e sofrimento, resistindo infrutiferamente aos avanços do Outono que o empurravam para o degredo, banindo-o da face daquela terra até daí a muitos meses.



Era sua missão assegurar que o Verão partia em paz com ele próprio e consola-lo na sua partida, dando-lhe ânimo para voltar mais quente e radioso no próximo ano. Tinha de proteger a sua partida de um Inverno desalmadamente frio e incomparavelmente sombrio. Era sua obrigação assegurar que essa sombra não seria permanente. Tinha de passar o Inverno a sanar as feridas abertas no Verão, para este renascer em pleno, no azul do céu com o despontar da primavera.

Era este o grande mistério que intrigava os seus amigos e conhecidos e cuja resposta queriam desesperadamente saber. Como lhe explicaria ele tão insólito e intimo segredo...

Que diriam eles se soubessem que ele era o Guardião do Verão?



Apelo à Luz da Paciência

A próxima história vai ser um pouco - para ser sincero muito - mais longa que as outras histórias, mas também não fará sentido coloca-la sob a forma de partes, pois ela é um todo sem partes.

Peço pois a vossa paciência para a demora na sua redacção. Seria mais fácil se a passagem do pensamento para o papel fosse instantâneo, mas não é.

Assim levarei ainda algum tempo a conseguir traduzir os impulsos eléctricos do cérebro em bits e bytes luminosos, para que possam acompanhar a história do segredo do Faroleiro, que por enquanto apenas ilumina a minha mente.

Depois voltarei a apelar à vossa paciência para a sua leitura.


22 de outubro de 2004

Brincadeiras de Crianças

Era um dia como tantos outros. Não que os seus dias fossem monótonos, na verdade, cada dia tinha para ele um sabor diferente e singular. Isso era algo de que não se podia queixar na sua profissão, pois cada dia tinha sempre algo de novo e inesperado à sua espera.

Reflectiu sobre o assunto e viu que, talvez, todos os empregos fossem assim, embora muitas vezes a cegueira da monotonia que ataca silenciosa e sorrateiramente, nublava a vontade de olhar as diferenças existentes em cada dia, escravizando o pensamento a concentrar-se unicamente nas semelhanças com o dia, semana, mês ou ano, anos anteriores.

Acabara a manhã e fora almoçar. Todos estes pensamentos atravessavam a sua mente enquanto saboreava com especial gosto o mesmo prato que tantas vezes comera. Era curioso, quantas vezes tinha pedido aquela mesma ementa? Muitas, demasiadas - Pensou.

O seu paladar gritava, tanto quanto lhe permitia a comida que na sua boca ia libertando gostos e odores deliciosamente tonificantes, que não era hora de pensar, deveria dedicar aquele instante a apreciar o prazer de uma boa refeição com um toque caseiro, com que a Dª Cândida o aliciava para a extravagância de cometer o pecado de ingerir calorias suficientes para matar a fome de pelo menos duas vintenas de criança sub nutridas num qualquer país do terceiro mundo.

Sentiu uma imensa culpa subir-lhe pelo esófago e resfolgar na boca. Acabou de comer e aproveitou o sol soalheiro, para um passeio purificador da sua alma, alimentado pelo excesso de calorias ingeridas momentos antes.

Seguia pela avenida absorto em pensamento fúteis, contemplando as árvores que se despediam lentamente das folhas, que na hora da partida ficavam castanhas de tristeza por serem obrigadas a abandonar a protecção do seio materno. No chão, um tapete digno de um desfile de "haute couture", estendia-se sob os seus pés, convidando a um passeio noutro ambiente.

Deu por si junto a um jardim. Ainda nem tinha reparado como estava bonito depois de requalificação a que tinha sido submetido. Olhou para o relógio, que marcava a hora exacta para entrar e apreciar a renovação daquele local. Lembrava-o muitos anos antes, num estado de semi-abandono, de puro desleixo. Procurou um banco onde se sentar para, descansadamente, apreciar em câmara lenta os sons e movimentos dos novos e renovados habitantes que agora povoavam aquela aldeia.

Libertou o seu olhar que rapidamente desatou a correr pelo jardim, inspeccionando cada espaço, canto e recanto, fotografando cada flor, cada árvore e tropeçando aqui e além com algumas pessoas, que pela ruas do jardim abasteciam de calma e descanso as baterias que os mantinham vivos.

Por momentos assustou-se quando o seu olhar decidiu saltar sobre o enorme lago que, no meio do jardim, refrescava uma animada família de patos. Mas foi infundado o seu medo. Numa demonstração de força e vitalidade o seu olhar saltou sobre o lago com um único impulso indo aterrar junto de um grupo de crianças que ao longe, no outro lado brincavam às agarradas ou qualquer coisa parecida. Sentiu no seu olhar uma inveja benévola, uma vontade imensa de também entrar na brincadeira e correr. Há quantos anos não corria assim, despreocupado, como aquelas crianças?

Não sabia se ainda teria forças para acompanhar aquele ritmo, na verdade essa é uma característica invejável da juventude, a de possuir uma fonte inesgotável de energia, capaz de iluminar o mundo inteiro com uma só descarga.

No outro lado a correria continuava, agora com uma bola à mistura. Coitada da bola, socada, pontapeada e arremessada por tamanha quantidade de energia. Imerso nestes pensamentos, quase não dava pelo grito de alarme que o seu olhar lhe lançou do outro lado.

Uma criança acabara de cair ao chão. Ou outros rapidamente, numa atitude altruísta de socorro, juntaram-se em volta dela, que continuava estendida no chão. Sem pensar levantou-se e correu o mais depressa que pode ao encontro do seu olhar. Como um barco de corrida, atravessou vertiginosa e perigosamente o lago pela ponte de madeira que unia as duas margens e dirigiu-se sem demora para o grupo de criança que permanecia imóvel a contemplar o companheiro estendido sobre o chão multicolor, forrado de folhas secas.

Tentou afastar algumas crianças para ver o estado do acidentado, quando para seu espanto, encarou com um rosto docemente feminino, que teria certamente algo mais de trinta anos. Ao seu ar meio desorientado e embasbaco ela respondeu:

- Eu estou bem, não se preocupe. Eu bem tento ser criança outra vez e acompanha-los, mas a energia das crianças parece não ter fim…

Ele olhou para ela e com um sorriso meio tímido, meio envergonhado estendeu-lhe a mão dizendo:

- Pode ajudar-me a sentir-me também, criança outra vez?


20 de outubro de 2004

Essência da Vida

Despertou quando um raio de sol mais obstinado teimou em atravessar a espessa camada de nuvens e ir espreitar o que se passava por detrás daqueles buraquinhos, que inundavam o quarto de uma calma sonolenta.

Abriu um olho, depois o outro e deixou aquele solitário raio de sol desvendar-lhe a realidade de um novo dia, um dia de sonho vestido a cinzento. Levantou-se lentamente espanando os vestígios da preguiça pelo chão do quarto. Dirigiu-se à janela, subiu a persiana e convidou o raio solitário de sol a entrar para partilhar com ele a alegria de encarar um novo dia como se fosse o primeiro de muitos que ainda lhe restavam viver.

Por entre a face tristonha e austera do céu nessa manhã, pareceu-lhe antever um sorriso pintado a azul. Pensou em sair e aproveitar ao máximo a luz daquele sorriso, iluminado por um tímido sol de Outono. Longe do seu farol pensou, que lhe apeteceu sair e passear.

O cheiro a terra molhada e o tonificante calor dos poucos raios de sol que agora acompanhavam o corajoso amigo que o tinha despertado, estimulavam na sua mente um apetite voraz por sair e passear entre árvores, pedra e fortes ruídos naturalmente calmos e suaves. Pisar a esponjosa turfa que começa a formar-se com a chegada da chuva. Contemplar as cores da moda da estação, com as árvores vestidas de mil e um tons de amarelo, vermelho, laranja, castanho, verde e mais muitos mais, todos singularmente bonitos, numa combinação perfeita, como só a natureza poderia harmonizar na sua infinita sabedoria.

Vestiu-se apressadamente numa corrida entre o pequeno-almoço e outras tarefas que rotineiramente nunca se lembrava de ter realizado. Por fim de casaco vestido e chave do carro na mão saiu em direcção ao paraíso. Pelo caminho reparava nas ruas desertas, no sol cada vez mais acolhedor, no céu mais risonho e pensava nos milhares de pessoas que continuavam encerradas na escuridão dos seus quartos alheios à beleza impar daquele dia de sol, após tantos dias de chuva.

Finalmente chegou ás portas do jardim do éden. Estacionou o carro, apertou o casaco para se proteger do frio e partiu por entre as árvores admirando a força que sentia transmitir-lhe aquele idílico lugar. Por entre árvores de folha caduca que pintavam de tons quentes a paisagem, o horizonte era aqui e além salpicado pelo verde de outras árvores de folha permanente, as quais conferiam uma diversidade e uma harmonia que dificilmente conseguiria explicar.

Continuou a caminhar por carreiros, veredas e trilhos íngremes sem se preocupar onde o iriam levar. Sem dor e com a alegria que o vento frio transportava em cada investida percorreu os metros que o separavam de uma fonte, a qual a água ao longo de muito anos desenhara na pedra dura de granito, lenta e pacientemente.

Juntou as mãos que colocou sob a água fria que brotava do seio da terra. Depois conduziu cuidadosamente as mãos até aos lábios e deixou aquela frescura natural invadir-lhe a alma.

Estava ainda imerso na frescura tonificante daquela água, ouvindo apenas a melodia compassada da natureza quando uma voz atrás de si lhe disse:

- Não vai beber a água toda, da fonte da juventude? Desculpe, mas eu também não quero deixar crescer a criança que vive dentro de mim.

Sem se virar, sentiu que aquele solitário raio de sol não o tinha iluminado acidentalmente naquela manhã.



18 de outubro de 2004

Passeio Pelo Bosque de ...

Corria esbaforido pelo bosque. Não estava cansado. A sensação de uma brisa constantemente impregnada de novos odores, renovadamente frescos, mantinham o ritmo acelerado da respiração em níveis deliciosamente controlados.

Descobria com insondável prazer caminhos antigos, tão antigos quanto o homem, mas sempre novos e capazes de revelar mistérios que nunca somos capazes de desvendar plenamente.

O suave tacto do caminho que à sua frente se estendia, convidava a longos passeios sem destino mais específico, que não o prazer da caminhada que esperava ver coroada, no final, pelo beijo simples da alegria de ter chegado.

Atravessando longas planícies com a paciência e o desprendimento de um nómada, por entre vales e montes que prometiam a frescura de amor eterno, sentia crescer em si o milagre de caminhar sobre as águas, guardar na palma da mão um riacho de águas cristalinas a transbordar de vida e de uma sensibilidade naturalmente singular.

No seu pensamento abafado por aquela tempestade de desejos, que ardia numa chama cada vez mais forte e arrebatadora, ateada pelo prazer de um sonho ganhavam vida os contornos da imagem singularmente complexa duma caminhada a dois por uma longa estrada, sem fim, ladeada pela frieza de águas que corriam paralelas e sem sentido, retidas por uma simples rede, das quais tentavam, energicamente, manter-se afastados.

No horizonte uma subida íngreme prometia transformar uma alucinação de mero gozo num deleite escandalosamente belo de prazer e comunhão de comunicação muda.

Reuniu as últimas forças e subiu vertiginosamente a encosta, afastando com vigor a neblina que o impedia de ver além da sombra do prazer superficial. A sensação de liberdade de uma nova verdade estendia-se agora à sua frente.

Finalmente, libertando-se da tensão violenta da caminhada encaixou-se nela, abraço-a e colocou a mão sobre o seu ventre. Delicadamente afastou-lhe o cabelo e deixou cair num último grito silencioso de amor, um beijo na base da sua nuca, antes de adormecerem...

...juntos.



15 de outubro de 2004

O Peso dos Desejos

Hoje estou assim vazio, vergado ao peso das palavras que se acumulam na minha mente.

Queria ver-te, poder dizer-te tudo, descarregar estas palavras que me amordaçam o sentir.

Queria conhecer-te e iluminar essa sombra na qual te escondes.

Queria tocar-te, acariciar-te. Deixar os meus dedos explorar cada centímetro do teu corpo e gravar cada minúsculo sinal, cada traço de ti no meu tacto.

Queria beijar-te, Amar-te, uma e outra vez, num ritmo suave, o ritmo das ondas do mar, quando, também elas, acariciam e morrem de prazer nas areias quentes e douradas da praia.

Queria colar o meu corpo no teu, sentir o pulsar do teu coração, a respiração ofegante de paixão e finalmente libertar-me deste vazio que me esmaga com o peso das palavras que anseio, mas não consigo dizer-te.

Queria libertar-te dessa sombra, a única que conheço, deixar os meus lábios soprar numa brisa suave um sussurro delicado no teu ouvido, aliviando-me deste peso atroz ao dizer-te, finalmente, que...

te Amo!

(A imagem veio de aqui. Foi apenas reduzida)


14 de outubro de 2004

Aroma de ...

Ontem à noite decidi dar um longo passeio pelo blogouniverso. Não posso dizer que tenha sido uma viagem sem rumo, pois visitei apenas alguns planetas cuja luminosidade prometia recompensar a minha viagem com o prazer simples de umas leituras agradáveis.

Fiquei admirado com algumas sensações transmitidas pelo que vi nesses planetas. Para ser sincero não posso dizer que a surpresa tenha sido total. Não, não foi, mas tal, deve-se também ao facto de não ter aportado em planetas sombrios.

Vi gente bonita, que trata as palavras com uma delicadeza espontânea, para exprimir naturalmente sentimentos que muitos de nós num momento ou noutro também sentimos.

Com a Luz do Farol a orientar os passos seguros da minha viagem pela vastidão do blogouniverso, pintado a negro, entrecortado por pequenos pontos brilhantes, fui voando de um planeta para o outro à velocidade da luz, soprando aqui e além um raio de luz, um clarão ou mesmo uma sombrinha, moldada na dor alheia.

Depois disso naveguei para o descanso acompanhado por um livro de carne e osso. Gosto particularmente de dar uma hipótese aos autores portugueses, mas na verdade, muitos conseguem ensombrar o dia mais luzente. Uma ânsia faminta de “literalizar“ os seus textos, isto é, de os tornar verdadeira peças literárias, impele-os a transformar histórias intimamente simples e belas, num verdadeiro suplício para o leitor.

O uso e abuso de figuras de estilo, as inúmeras reflexões sobre temas por si já complexos e subjectivos sem nada de novo, as constantes divagações pseudo-filosóficas dos autores, as monstruosas descrições que amputam barbaramente as asas da imaginação do leitor, levam-nos a confundir e a questionar quem são os verdadeiros protagonistas da história: se as personagem que deveriam ganhar vida à medida que as letras penetram nos olhos do leitor ou se o autor que projecta nas reflexões e divagações das personagens, pessoas e sentimentos que intuitivamente sentimos não pertencerem àquela história.

Lembra-me sempre as telenovelas brasileira que após trezentos e muitos capítulos, conseguimos perceber que a história era tão simples que poderia te sido contada numa dúzia de capítulos, sem perder o seu verdadeiro significado.

Ao leitor resta a sensação de ter aberto um frasco de perfume, onde foram apinhadas toscamente uma imensidão de fragrâncias, que o impedem de sentir o verdadeiro aroma da história.

Claro que agora também poderia começar a tentar descrever os inúmeros aromas que, ontem à noite, senti ao abrir o frasco, mas acho que vou dar algum espaço para que a vossa imaginação possa ganhar asas e voar.


13 de outubro de 2004

Vestígios

Sentei-me
Olhei
Imaginei
Não Vi
Mas Senti.

Levantei-me
Caminhei
Tropecei
Não cai
Abracei-te, a ti.

Aproximei-me
Toquei
Palpei
Não ofendi
Simplesmente Sorri.

Beijei-te
Coras-te
Sorris-te
Amas-te

Não te vi
Não te posso ver
Mas senti
Pressenti
Descobri
Que estarás sempre aqui
Dentro de mim.


(A imagem veio de aqui. Foi apenas reduzida)


12 de outubro de 2004

Ela

Hoje é que estou mesmo sem inspiração. Deve ser a gripe de Outono que me ataca a capacidade criativa.

Sentei-me em frente ao computador, olhei o ecrã e decidi ir dar uma espreitadela à janela do farol. Vi que estavam por lá personagens de uma ficção demasiado real, que aguardam pacientemente que me sente e lhes trace o futuro numa folha de papel virtual. Na verdade qualquer dos enredos já tem um principio e um fim (o meio fica para depois), e até sei o que vi acontecer a seguir e até depois do "a seguir", mas quando coloco os dedos sobre o teclado sou imediatamente atacado por uma paralisia, tipo tendinite, que não permite que as palavras que se acumulam na minha mente se libertem e voguem para o branco do ecrã.

Não sei se será normal? Talvez sim, talvez não. Só sei que não consigo deixar de pensar nela.

Nela, de quem apenas conheço uma sombra que se espreguiça na areia de uma praia desconhecida e deixa que o mar lhe beije os pés.

Nela, de quem apenas conheço palavras bonitas que sempre me emocionam quando as leio, sempre mais de uma vez e guardo num cantinho especialmente aconchegado do meu coração.

Nela, de quem falo ao sol e de quem as estrelas e lua me trazem boas novas enroladas na espuma do mar, que as deixa estendidas numa doce cama de areia.

Nela, que é mulher, mas que bem podia ser uma bela sereia.

Assim continuo, à espera. Espero que o sol adormeça para que o mar agarrado ao luar e embrulhado num cobertor de estrelas brilhantes, me traga, enrolado no colo as suas doces palavras.



11 de outubro de 2004

Abrigo do Tempo

Esta é a imagem de um local, ao qual, propositadamente, não quis dar nome.

Na verdade pouco importa o nome, o que realmente importa é que ali, tal como em muitos outros locais, podem ver-se abrigos, abrigos de pessoas que vivem, aliás como muitos de nós vivemos, apenas com uma pequena, mas simultaneamente abissal diferença: neste pedaço de terra esta gente abriga-se do tempo.

O mesmo tempo que aqui parece deleitar-se saboreando placidamente os pedaços da vida que ainda nos restam, em vez de os devorar esfaimado.


Entre toda a correria
Que nos marca dia a dia
Talvez valha a pena parar,
E pensar
Na importância que nos cabe
Em um destes abrigos conservar
Pois neste acelerado andar
Só muito tarde saberemos
Que o tempo ou a vida
Nos preparou uma partida.



8 de outubro de 2004

Limites do Sonho



Quem tem o hábito de acompanhar as viagens deste Faroleiro pelo mundo das palavras sabem que este é um espaço essencialmente de letras, letrinhas pretas em fundo branco, como um livro. Não obstante ultimamente tenho sentido a necessidade de acompanhar as letras por algumas imagens, que escolho por sentir que ilustram o palpitar do que procuro transmitir.

Hoje é diferente, pois a imagem, como podem comprovar, assumiu o protagonismo desta viagem.

A explicação é simples. Ontem enquanto divagava pela Internet cruzei-me com esta imagem (não me perguntem onde, pois não sou capaz de descobrir de onde a tirei, mas desde já confesso que não é minha). E foi um Amor à primeira vista, e tal como na generalidade dos Amores à primeira vista não me atirem com a malfadada pergunta “- e como foi? Como aconteceu?”, porque estas coisas não se explicam, ou quando se explicam, as justificações parecem sempre vazias e fúteis aos olhos de quem não as sente.

Ao ver aquela estrela do mar, só, suspensa sobre as águas espelhadas de braços abertos a um mundo novo e desconhecido, contemplando o céu ao fundo, onde as forças do bem e do mal parecem lutar não sei bem porque motivo; algo tocou a minha alma e deixei a minha imaginação levantar âncora e navegar num sonho nostálgico de verão rumo ao final de dia quente numa praia perdida num lugar paradisiacamente inóspito, no qual o sonho não tinha limites.

Por isso decidi deixar-vos esta imagem do meu sonho, talvez em vós desperte sonhos diferentes, quem sabe?

Abram as asas da vossa imaginação e ganhem coragem para sonhar.


7 de outubro de 2004

A Janela da Imaginação

Aqui sentado
No parapeito desta janela
Que abri no bem no meio
Da minha imaginação
Sinto o toque delicado
Da luz que nasce da tua mão
E ardentemente me toca o coração.

Uma mão cheia de palavras
Que ofereces com paixão
Provavelmente sem imaginares
Como delas me alimento
Com devota sofreguidão.

Ai quem me dera ver-te
Tocar-te, beijar-te e amar-te
Tirar-te dessa sombra dolorosa
Que te afasta da luz que me dá vida
E Abraçar-te dia após dia
Como quem abraça um onda rosa

Da cor da vela que alimenta o sonho
Que deslumbrado contemplo
Sentado no parapeito desta janela
Aberta à esperança eterna
Preenchendo plenamente o coração,
Da minha incansável imaginação.


6 de outubro de 2004

Dividir Sai Mais Em Conta, ou Pobres e Individados

Tenho consciência que o assunto que escolhi para hoje não se enquadra no tipo de textos que os meus leitores habituais estão familiarizados. Como também já tive oportunidade de frisar, este blog não tem propriamente uma linha editorial, como jádisse, escrevo sobre o que vejo, ouço e sinto, embora alguns assuntos tenham um peso mais relevante, como é aliás notório.

Sem mais delongas, vamos então falar do tema de hoje. O "culpado" por esta reflexão é o carteiro. Sim, pois este senhor, hoje, deixou-me uma carta que anexada trazia um folheto publicitário de uma instituição bancária (Millennium bcp – é certo que ninguém me paga a publicidade, mas também ninguém me proíbe de deixar aqui o nome do habilidosos responsáveis por esta campanha) onde se apelava à contracção de um crédito de seu nome "Crédito Regresso às Aulas".

Muito sucintamente o que estes senhores propõem é que compremos tudo o que desejarmos para o regresso às aulas (entre 1.500 e 3.500 euros) que eles financiam até 60 meses.

Até aqui tudo bem, não fosse começar a pensar que a duração (média) do material escolar (livros e restantes material acessório) bem como das propinas varia entre os 9 e os 12 meses (no máximo). Ora quer isto dizer que andarei a pagar durante mais, entre 51 a 48 meses, esse mesmo material.

Mais curioso é que, caso o banco me considere digno de tal, poderei acumular um crédito destes todos os anos para pagar os livros de um filho a estudar, ou seja, poderei acabar a pagar 5 créditos simultaneamente. Já gora, podem, como mero exercício mental, pensar que em vez de um filho têm dois ou três.

Claro que há ainda de referir a taxa de juro. Sim, porque a dita ajuda para o pagamento é determinada em condições similares às de um crédito pessoal, ou seja, considerando uma taxa base (nominal sem bonificações) de 13,5%, o que pode transformar-se numa Taxa Anual Efectiva Global (TAEG – representa a taxa de juro efectivamente suportada pelo cliente, isto é, a REAL considerando todos os custos associados ao crédito) de 32,47% (para um montante de 1.500,00 e 12 meses de prazo), quando a taxa de referência do banco central Europeu (a taxa a que os bancos se podem financiar junto deste) varia entre os 2,09% e os 2,385% (cotação de hoje).

Mesmo considerando a bonificação máxima concedida pelo banco (5%) a TAEG seria ainda para o mesmo crédito de 14,76%.

Exemplo:
Finalidade: Crédito Educação e Formação Profissional
Montante Pedido: € 1.500,00
Total dos Encargos: € 107,34
Montante do Financiamento: € 1.500,00
Prazo do Financiamento: 12 Meses
Valor da Prestação Mensal: € 134,71
Taxa Nominal (base): 13,50 %
Bonificação: 0,00 %
Taxa Nominal Bonificada: 13,50 %
Imposto de Selo sobre os juros: 4,00 %
TAEG: 32,47 %

Claro que, o que me escandaliza mais não é facto de o banco propor um crédito em tão "vantajosas" condições para que os "meninos" possam "estudar", nem tão pouco o facto de andar a pagar durante 5 anos manuais que são usados apenas durante aproximadamente 9 meses, nem ainda o facto destes manuais não terem um reaproveitamento digno do nome, o que mais me escandaliza é mesmo o facto de a educação e a formação "tendencialmente gratuita" que devia ser um direito de todos e um obrigação do Estado tenha de ser paga e de tal forma que contribua para o empobrecimento das já arruinadas famílias portuguesas.

Depois de toda esta descrição, que espero não tenha sido muito maçadora, continuo com a sensação que algo está mal, mas não consigo perceber com clareza o que é.

Talvez seja somente um problema meu... possivelmente ainda não vi a luz.


5 de outubro de 2004

Hoje, Amanhã e Depois...

Passado, presente e futuro

ou

presente, futuro e passado

ou

futuro, presente e passado,

a escolha dependerá apenas da ordem de prioridade de cada um.

Mas pode também e talvez ser somente presente e futuro.

Pois é assim mesmo que alguns encaram a vida, viver o presente e não pensar muito no futuro.

E o passado?

A quem interessa o passado. Passado é passado, já passou, não interessa. O que interessa mesmo é viver o presente, olhar para o futuro, mas sem pensar muito nele, pois esse pensamento pode ser assustador.

Este é o reflexo da sociedade actual, uma sociedade que vive vertiginosamente com o olhar constantemente fixo no amanhã. Peixinhos que esperam avidamente pelo que virá, pelo dia seguinte, a nova experiência que se transformará no nosso presente, esquecendo simplesmente o passado.

O passado, a memória do que somos, do que fomos e daqueles que deram o sangue e suor para que hoje possamos apreciar o muito que temos, mas sempre nos parece pouco. Egoísmo, puro egoísmo, resultado de anos e anos a respirar um ambiente que intoxica a mente com a ideia de que, o que interessa somos nós e os outros que se desenrasquem. Uma sociedade que olha com uma indiferença fria para o passado, o mesmo passado que guarda a identidade de quem somos, de onde vimos e para onde vamos, à semelhança de um código genético.

Mas não é só em relação ao passado que o nosso comportamento é absurdamente estranho. Também em relação ao futuro a sociedade, isto é, nós, transformámo-nos em egoístas. O “futuro” resume-se àquilo que a nossa vista abarca, que é como quem diz, a nossa vida alcança. “As gerações futuras que se amanhem porque o que tenho, para mim chega” é a frase predilecta de alguns pseudo-defensores de nobres valores.

Alguém dizia há dias a propósito de reflorestação de uma área ardida: “O quê? Plantar Castanheiros? Nem pensar, esses demoram demasiados anos para crescer. Estaria a plantar para os meus netos.”

Pois é assim mesmo, uma sociedade “madura” com muito mais de 2000 anos, transformou as pessoas com 35 ou mais anos, em idosas para o mercado de trabalho. Uma sociedade que espezinha desapiedadamente a experiência e ponderação que apenas a maturação lenta de muitos anos em situações mais e menos difíceis é capaz de aperfeiçoar e conferir aquele gosto especial que paradoxalmente apreciamos no bouquet de um bom vinho, ou no paladar de um bom enchido de cura tradicional, não daquela “cura tradicional” feita à pressa em fábricas, mas daquelas feita em fumeiro de lenha.

Afinal parece que tudo de resume ao hoje, ao amanhã e ao depois.O resto, bem o resto fica para depois.


(A dificuldade em escolher apenas uma imagem para ilustrar o palpitar deste texto, ditou a escolha destas duas.
Não sei explicar o porquê, mas sinto que se complementam)


3 de outubro de 2004

A Luz das Mensagens

Sentado à frente do computador esperava impaciente enquanto martelava impiedosamente o botão direito do rato com o cursor em cima do botão virtual do enviar/receber.

Já lhe conhecia os hábitos. Escrevia sempre às mesmas horas, mas hoje nada.
Entretanto o seu pensamento murmurava uma e outra vez:

- Nada, nada, nada? Não pode ser!

Foi num desses ataques ao botão que obteve a tão desejada resposta: "a receber mensagem 1 de 1". Enquanto a barra de progresso ia enchendo lentamente a sua ansiedade aumentava a um ritmo vertiginoso, milhares de vezes superior ao preenchimento da famigerada barra que parecia não ter fim.

Por fim lá estava ela, a tão desejada mensagem, que iluminou um inconfundível sorriso no seu rosto, dissipou a impaciência e o conduziu a um porto seguro.


1 de outubro de 2004

A Espera

Espero, sentado à sombra desta luz que não me ilumina.

Espero e desespero!

Espero e desespero na ânsia da tua voz, do teu cheiro, de um olhar, um toque suave dos teus dedos macios, cavalgando suavemente os meus lábios. Espero e desespero por um beijo, pelo do carinho de um abraço, o fogo ardente da pele em pele. Estremeço ao sentir na minha mente o arrepio de prazer que percorre o teu corpo e o desalinho dos teus cabelos em minhas mãos.

Mas tu não vens e eu espero, espero e desespero mas não desisto, não capitulo perante o mar de pensamentos absurdos que me empurram numa direcção que quero seguir. Estou seguro, sei o que quero e espero, espero e desespero ao olhar para o relógio onde os ponteiros correm desenfreadamente um atrás do outro, numa corrida louca, mas sem meta à vista.

- Não é possível - digo. Ainda agora eram...

Mas o tempo escorre entre as chamas da luz que agora teimam em partir e eu continuo só, ali sentado, continuo à espera, espero e desespero na secura da minha alma.

Espero e desespero por ver-te surgir com o teu olhar transparente, o cabelo ondulado e pele vestida de espuma que agarraste da onda que te virá entregar em meus braços, ali no areal, só para mim, para por fim, matares esta sede de amor.

Espero e desespero, mas não me vou, agarrado a uma concha de paixão, ouvindo a tua voz que aprisionei num búzio imaginário do meu pensamento.

Espero e desespero, mas resisto, porque aguardo que luz do farol te conduza, segura, até mim.



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