18 de junho de 2004

A Perfeição (Parte I)

Mestre Damião tinha acabado de jantar, mas nesse dia sentia-se particularmente insatisfeito. Não era um sentimento novo, há vários dias que vinha a sentir uma sensação de desconforto no fim de cada dia de trabalho na sua oficina. 

Mestre Damião era um reputado e apreciado artesão, que talhava em vulgares pedaços de madeira objectos de invulgar beleza e perfeição. Ultimamente não conseguia encontrar a mesma satisfação nas obras que das suas mãos brotavam como a água brota da fonte, naturalmente. Por vezes, sentia que as forças se lhe escapavam pelas pontas dos dedos, pressentia que não poderia continuar por muito mais tempo a dar vida aqueles pedaços de outras vidas. Seria certamente também uma tristeza, para todos aqueles que tinham o raro privilégio de as poder apreciar. Tinha tentando ensinar a sua arte a diversos aprendizes, que tinham mostrado interesse em aprender como se dava uma nova vida a pedaços de madeira condenados a morrer noutras mãos. 

Contudo, Mestre Damião, cedo percebeu que a sua tarefa era complexa, pois não conseguia que as peças que da sua mente ganhavam forma e eram moldadas pelas mãos dos seus ajudantes atingissem o mesmo brilho, o brilho de uma rara beleza cheia de vida que iluminava todas as suas criações. Pensou que fosse a forma mecânica e distante com que estes olhavam para os pedaços de madeira que golpeavam uma e outra vez, até estes atingirem a forma definitiva. De repente compreendeu a razão da sua insatisfação. As suas peças reflectiam igualmente a mecanização que tanto repudiava nos seus ajudantes. 

Com a sensação das forças a fluir de forma descontrolada pelos dedos, sentiu que tinha pouco tempo para criar uma peça especial e única, cujo brilho ofuscasse o de todas as outras peças. Apressadamente, levantou-se e dirigiu-se à porta da cozinha que abriu de rompante. Atravessou o pátio e entrou na sua oficina determinado a criar a peça "perfeita". 

Sentou-se na sua bancada, lançou a mão à caixa dos pedaços de outras vidas. Puxou por um pedaço de madeira que colocou em cima da bancada. Olhou com atenção para a vida que tenha à frente, enquanto a sua mente tentava descobrir a "forma perfeita". Ao virar aquele pedaço de madeira, viu que na verdade não era um, mas dois pedaços, que estavam ligados de uma forma estranha e incompreensível. Foi nesse instante que decidiu, que não seria uma, mas sim duas peças que reflectiriam a beleza e simplicidade daquela união. 

Já era quase manhã, quando Mestre Damião terminou a sua obra. Ao olhar para aquelas peças sentiu-se invadido por uma onda de satisfação. Os pedaços de madeira tinham cada um, uma nova vida, uma vida própria e independente, mas o seu brilho adquiriu outra intensidade e força quando se juntavam. 

Mestre Damião, juntava e separava as peças como uma criança, monta e desmonta repetidamente um brinquedo, sabendo sempre qual será o resultado final. Finalmente sentiu-se cansado quando o sol da manhã lhe deu um carinhoso beijo de bom dia. Deixou aquelas novas vidas em cima da sua bancada e pausadamente saiu da oficina, atravessou o pátio e entrou em casa, decidido a descansar.

Finalmente poderia descansar.


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