10 de janeiro de 2022

O Buraco da agulha

Ela olhou-o com um misto de ternura e desilusão. Debruçou-se um pouco e disparou delicadamente, sem piedade: 

- O teu Amor por mim cabe no buraco de um agulha.

Foi um disparo seco. A arma parecia ter um silenciador, pois apenas se escutou um ligeiro sopro zumbido. Em nenhuma das mesas contíguas se sentiu mais do que o passar de uma breve brisa sem aroma.

Ele ficou imóvel. Mudo. Por fim, esboçou um sorriso compreensivo, profundamente carinhoso e disse:

-Tens razão. Nem vou contestar.

Em seguida, empurrou a cadeira para se levantar e debruçando-se sobre a mesa levou a mão à face esquerda dela enquanto depositava um beijo na face direita. 

Em breves segundos desapareceu pela porta. Ela permaneceu ali sentada. Tinha sido o fim. Pressentia-o. Mas ao mesmo tempo, aquele beijo doce de despedida parecia conter uma promessa que a confundia. Olhou através do colossal vidro da janela em busca dele. Assaltou-a a vontade de correr atrás dele. Mas não havia sinal dele.

Pediu a conta e descobriu que ele havia pago. Apenas lhe restava ir refugiar-se em casa. Ao abrir a porta sentiu a casa mais vazia do que era normal. Demorou um pouco a perceber, mas por fim compreendeu que era ela que estava mais vazia. A casa, estava tão preenchida como quando tinha saído essa manhã. Trocou a roupa e deitou-se no sofá petiscando umas coisas estranhas com muito sal e gordura. Mas hoje precisava delas. Não sabia se era para se castigar ou para se consolar. Não interessava. Ligou a televisão. O ruído ajudava a preencher o espaço. No rosto sentia intermitentemente um leve rubor na bochecha direita. Algo firme tinha ficado pegado na pele. 

Estava absorta na descoberta da origem daquela sensação tão agradavelmente surpreendente quando o toque da campainha a despertou. Saltou sobressaltada e dirigiu-se à porta. Pelo visor do intercomunicador viu quem era. Abriu a porta e ficou a aguardar. Momentos depois ali estava ele, à sua frente. Sorridente.

Ele pedia-lhe para estender a mão. Ela assim fez e ele depositou com cuidado uma agulha na palma da sua mão. Ela expressou espanto e perguntou:

- Para que é esta agulha?

- Não imaginas? Convida-me a entrar e eu explico-te.

Ela afastou-se e ainda perplexa agitou o braço esboçando um sinal de convite. Ele transpôs a soleira da porta e seguiu-a até à sala. Sentaram-se os dois no sofá em silêncio. Comunicavam com o olhar mas não se compreendiam. Por fim ele tirou do bolso um enorme novelo de linha para estupefação dela.

- Vamos coser alguma coisa? Perguntou ela.

- Depende – disse ele. Onde está a agulha que ainda agora te dei?

Ele abriu a mão e expôs a agulha, segurando-a na vertical entre o polegar e o indicador, com cuidado. Ele pegou num ponta do gigantesco novelo e fez passar uma ponta pelo buraco da agulha. Em seguida disse-lhe.

- Disseste-me que o meu Amor por ti cabia no buraco de uma agulha. Concordei e disse-te que tinhas razão. Estou aqui para te demonstrar que, apesar de anuir com a tua opinião, não estavas de todo certa, e que até mesmo pelo buraco mais pequeno é possível passar muito mais do que por vezes conseguimos imaginar. Temos um novelo inteiro, muito metros de Amor para transpor por este buraquinho exíguo, desde que permitamos que o buraco permaneça desimpedido por muito tempo... pois não sei ao certo quanto tempo vai ser necessário para te o dar todo.

 



 

 


17 de novembro de 2020

Tudo por um amor (in)certo (1)

Pensava suavemente na vida. Os dias corriam mornos numa viagem que o amor não compreendia. Viajar era algo que ela gostava particularmente de fazer. Sempre que podia fazia as malas e partia… só. A sua cumplicidade com a solidão, embora aceite não era perfeita. Uma relação atribulada. Aliás como todas. Feita de altos e baixos. Nos altos era uma relação saudável, aceitando cada uma a presença da outra. Diria mesmo que se desejavam mutuamente. Uma espécie de namoro proibido, mas de desejo pobre. Sem paixão.

Nos baixos… bem nos baixos era a desarmonia total. A solidão, possessiva como só ela, exigia entrega total, dedicação exclusiva, não admitindo intromissões. Eram momentos tensos queles em que crescia a vontade de a estrangular. Mas logo, só, pensava no após. Na saudade que viria a sentir da companhia que a solidão proporcionava à sua independência e sem a qual se sentia acorrentada.  Vivia assim, equilibrando malabaristicamente os altos e baixos enquanto caminhava, só com a sua solidão pela fina corda bamba da vida.

Num desses arrufos com a solidão decidiu castigá-la. Vestiu um elegante e vestido, escolheu umas meias a condizer, aprumou a maquilhagem, estreou um sorriso novo e marcou um encontro a sós, com ela, a sua solidão. Chegaram ao local combinado, uma refrescante esplanada, ao mesmo tempo. Parecia que tinham combinado. Uma coordenação perfeita. Talvez esse fosse o principal motivo por que permaneciam juntas há tanto tempo. Compreendiam-se mutuamente, diria mesmo que se complementavam. Onde estava uma a outra aparecia sem se fazer anunciar. Estava sempre lá para ela, com ela. E naquele dia, apesar do despeito que lhe queria fazer sentir, ela não se esquivou a marcar presença, a estar lá com ela, por ela.

Sentou-se a seu lado. Juntas e sós ficaram a apreciar a morna da tarde enquanto admiravam as outras pessoas que sós ou acompanhadas fraternizavam naquele espaço. Entre as mesas cheias de risos e silêncios digitais partilhados observou que não estava só na companhia da solidão. Duas mesas à direita estava um cavalheiro, na verdade era um homem, ou assim parecia, mas chamá-lo de cavalheiro pareceu-lhe mais elegante e provocatório para a sua solidão. Esta imediatamente notou o interesse da sua alma gémea no cavalheiro e não gostou nada. Tentou atrair-lhe o olhar para outras mesas onde outros casais pareciam infelizmente acompanhados. Mas ela estava determinada a mostrar à sua solidão quem mandava. Exercitou a sua determinação e autorizou o olhar doce ir procurar a companhia cúmplice do olhar abstraído do misterioso homem. 

Debruçado sobre a mesa, ele tomava notas num bloco A5 de capa tenuemente bronzeada. De vez em quando erguia o olhar em direção ao céu azul como se consultasse os astros em busca de respostas ou inspiração. Em seguida voltava a fitar o bloco e a mão frenética desenhava linhas curvas e retas no papel. À distância pareciam palavras. Pareciam e eram, mas para ela era mais emocionante pensar que aqueles traços aprumados e organizados poderiam ter um significado secreto. Poderia ser uma carta de amor, um postal de despedida ou a nota de suicídio da solidão que acompanhava o misterioso escritor.

Que estaria ele a escrever? 




12 de março de 2012

A Luz das Palavras

Queria dizer-te muitas coisas…
Talvez poucas, mas fortes e sentidas. Talvez até nem precise de te dizer nada.

Afinal para que serve a sintonia, a telepatia do olhar?

Mas a verdade é que me escondo entre as palavras que te digo e as que guardo para mim. Injustamente.

Há muitos tempo, mais do que gostaria de admitir, aprendi que o silêncio pode ser muito mau, cruel mesmo. Mas aprendi também que as palavras podem igualmente ser como adagas afiadas. Primeiro, finamente, despojam-nos da casca que nos protege. Depois penetram bem fundo dentro de nós esventram-nos o miolo e sangram-nos a alma. É como aparar uma grande laranja da qual se extraem os gomos, um a um, para depois trincar e sorver o sumo.

Há ainda e sempre o perigo, constante, das palavras se virarem contra nós. Elas são traiçoeiras. Dizem apenas o que querem dizer e, muitas vezes, não o que querem realmente dizer.

Talvez por isso dou, sempre que posso e me deixam, primazia aos actos, às sensações e aos gestos.

É que os actos, as sensações e os gestos podem iludir, confundir e até enganar, mas não mentem.

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28 de junho de 2010

Just a Flash of Light... afinal a luz não está morta.
Veremos o quanto brilhará.


15 de julho de 2009

O sentido da vida

Bolas!!! Quase 5 anos. Já passaram quase 5 anos.  Mal podia acreditar. 

 Envelhecera sem dar conta, entretido em enredos mesquinhos de muitas vidas sem sentido, ou cujo sentido não faz sentido sem tirar o sentido à vida dos outros pelo simples prazer de as ver sem sentido, ou para aplacar o vazio da falta de sentido das suas próprias vidas. 

Faz isto algum sentido? 

Pedro jurára, um dia, que a sua vida não seria assim, sem sentido, mas agora percebia como tinha caído na armadilha. Fora apanhado! 

 - And now? - Pensou em inglês. Por vezes era mais fácil, mais directo pensar em inglês, sem os floreado típicos dos latinos. Now... é procurar um sentido, havia que quebrar o ciclo vicioso de sentir que não há sentido. 

Pensou nos belos olhos verdes, num rosto delicado, na provocação singela do seu sorriso, na forma meiga como lhe acariciava as mãos, o rosto, o pescoço, hummm... 

Afinal sempre havia um sentido... ou dois, porque a sós a vida perde todo o sentido.


18 de maio de 2009

Mar do Amor

Passamos a vida a carregar com as mais diversas futilidades. Malas cheias de nada que não nos dão felicidade, prazer ou alegria. Contudo carregamo-las com uma passividade que enerva e no extremo, chega a meter nojo.

Mas há sempre um dia, um dia em que despejamos o vazio que carregamos em todas essas malas e abraçamos um corpo repleto de felicidade, alegria, muito Amor e uma imensa ilusão.

Nesse dia saltamos a bordo do navio, ou do bote, sabendo que a mais leva agitação do mar nos irá a arrastar para o fundo, um fundo escuro e frio.

Mas que importa isso? Nada, absolutamente NADA, pois esse é o dia mais feliz de toda uma vida.

Pedro vivera intensamente esse dia, e mesmo quando a tempestade o tentou arrastar para o fundo das água cristalinas da baía, ele sorriu, e gritou bem alto:

- SOU FELIZZZ! SOU FELIZZZZ!

Na margem um olhar brilhante e intermitente desbravava um caminho nas águas agitadas da baía, uma rota que saberia o conduziria a ela...

...às ondas doces, calmas e intensas no mar do seu imenso Amor.


14 de março de 2009

Luz Intermitente

Vou e volto,
não paro,
não descanso.

Vou e volto
volto a ir e a voltar
mas algo me faz parar
e olhar,
contemplar o mar
no teus olhos,
a brisa nos cabelos soltos
na alegria de amar.

Vou e volto,
como este farol que não cansa de rodar
e rodar e rodar
sem vacilar
sem nunca parar.

Roda pela esperança, de um dia o teu amor iluminar.


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