31 de dezembro de 2006

Traição ao Amor

Apesar de aparentemente andar um pouco afastado deste Farol, meu Porto de abrigo, não podia deixar terminar o ano sem acender o farol e deixar os electrões fluir pelo espaço cibernético. Não o fazer seria deixar o ano morrer às escuras, e como ele deixar morrer este Farol, algo que jamais pode acontecer.

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Acordou sorrateiramente, furtivamente escapulindo-se aos longos e fogosos braços do sono. O dia adormecia a noite que obstinada teimava em não querer deixar morrer a última centelha de luz da escuridão.

Com os olhos ainda semicerrados, sentiu o aroma do café da manhã, certamente do vizinho do primeiro andar, envolvido num potente odor a pão queimado. Despertou o seu sentido da audição, espreguiçou a orelha e ficou a aguardar. Após uns instantes o já familiar grito mer… !!

Aquela situação recorrente transmitiu-lhe uma sensação de conforto, afinal o mundo continuava igual ao dia anterior, e ao outro antes e a tantos outros que tinham passado. Era tão mais fácil acordar assim, sentido ao longe, muito ao longe a ameaça do desconhecido.

Inspirou profundamente, bocejou em seguida expulsando os últimos sopros de vida do sono. Foi nesta última golfada de vida que sentiu algo diferente, um aroma estranho sovado entre o do café e as torradas queimadas. Inspirou mais profundamente, tentando captar os sinais vitais dessa vida que o despertara os seus sentidos, tentando perceber nas suas papilas gustativas que aroma era aquele, que flutuava por entre mares de avassaladores vagas de odores intensos. Era sem sombra de dúvida um perfume de mulher, doce e suave, mas simultaneamente forte e intimidador, o suficiente para combater a tirania do poder dos outros odores.

Levantou-se com um sorriso meigo no rosto. De nariz em riste foi caminhando pela casa procurando a fonte de tão doce perfume. Foi percorrendo todas as divisões, uma após uma. Vazia…, vazia…, vazia…, vazia Impossível! Estarei a ficar doido? Pensou.

O perfume cavava cada vez mais fundo no seu olfacto e no seu espírito. Por momentos pensou que seria apenas uma extensão de um sonho, um belo sonho de domingo. Entrava então no escritório quando foi atingido por uma leve lufada de ar fresco com impregnado de intenso aroma a perfume que cavalgava ondas de ar revolto, como a mesma determinação do navio que anseia o abrigo de um porto seguro.

Como é o possível num escritório vazio? – pensou.

Lentamente foi percorrendo o escritório. A solução do enigma teria de estar ali. Inspirando lentamente ia explorando os aromas que se desprendiam dos objectos meticulosamente desorganizados e espalhados por todo o lado. De repente pasmou, era ali, em frente ao calendário onde o aroma era mais intenso. Olhou-o fixamente e percebeu finalmente o enigma.

Era aquele dia! Claro, como poderia esquecer. Mesmo que quisesse, não seria possível. O seu aroma estava demasiado entranhado na sua mente, no seu coração. Aquela capicua de dois algarismos. Era perfeita, como a sua proprietária, doce, infinita no seu encanto de nunca se saber onde começa ou acaba. O encanto do inesperado, o fervor da dúvida, a adrenalina da paixão.

Era hoje o dia do seu aniversário.

Repentinamente deixou-se cair na cadeira que repousava junto à secretária, cabisbaixo e pensativo. A sensação de alegria, do prazer da aventura, da descoberta que, até à momentos tinham comandado o seu corpo e o tinham levado a percorrer a casa atrás de um aroma de mulher tinha-se esvoaçado por entre um denso nevoeiro de desolação.

Olhou de soslaio o telemóvel, em cima da secretária. Vacilante a sua mão percorreu vagarosamente o curto espaço que a separava dele. Mesmo assim, a sensação de ter percorrido aquela distância a velocidades inconcebíveis para qualquer ser humano, percorreu-lhe a coluna sob a forma de arrepio frio e doloroso.

Os dedos titubeavam instintivamente sobre as teclas, percorrendo os dígitos que sabia de cor. Era chegado o momento de tomar uma decisão. Sabia que deveria telefonar e dar-lhe os parabéns, devia-lhe isso, isso e muito mais, e não era uma simples questão de dever mas também uma de querer, querer muito, desejar, mas… Mas, há sempre mais um “mas”, e quando não é um “mas” é um “se” ou um “contudo”, ou algum amontoado de letras a que chamamos palavra, e cujo significado é sempre o mesmo, o mesmo que agora lhe apertava dolorosamente o espírito segurando com força a mão e paralisando os dedos.

Podia sempre não ligar, sim podia fazer isso, tentou convencer-se. É claro que podia, até lhe parecia uma decisão acertada.

Qual acertada, qual quê! Seria uma decisão estúpida, tão aparvalhada como tantas outras que noutros momentos lhe pareceram as mais convenientes.

Era disso mesmo que se tratava de conveniência, de facilidade. Fugir é sempre mais fácil, ainda que mais cedo ou mais, o caminho que deixamos por percorrer na nossa fuga, se atravesse invariavelmente e imperiosamente no nosso caminho.

A confusão reinava na sua mente. O aroma dela inebriava-lhe o pensamento, esmagado pela racionalidade pútrida, alimentada, também ela, por outras emoções. A questão martelava-lhe a cabeça como um ferreiro moldando ferro em brasa. Em brasa, era exactamente assim que se sentia, um imenso calor perturbava-lhe o raciocínio. Pensou em atribuir a causa à época do ano, mas na verdade seria mais uma fuga, um calor que rapidamente se transformaria em frio mortal, em dolorosos calafrios com o pavor das consequências.

Olhou mais uma vez para os dedos que, imóveis, desenhavam no teclado do telemóvel a silhueta dela com nobres algarismos. Por fim pousou o telemóvel sobre a mesa, cerrou brutalmente a mão desfazendo em pó imaginário os votos de Feliz Aniversário, que silenciosamente foram virtualmente escorrendo entre os dedos em direcção a um chão real, como se de areia se tratasse.

Tinha consciência que com aquele acto desencadearia uma reacção em cadeia impossível de parar com consequências terríveis e inimagináveis, mas (mais um “mas” que se atravessava no seu caminho de fuga) a decisão estava tomada.

Ficava a esperança que algum dia, ao passear na praia e ao olhar a luz do farol, ela pudesse compreender, e até, quem sabe, quiçá perdoar, tendo consciência que jamais seria possível apagar do diário de bordo aquele acto de traição ao Amor, um verdadeiro golpe de estado no qual o cabecilha era... ele!

Quem sabe?



24 de dezembro de 2006

Um Natal Com Muita Luz


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