23 de dezembro de 2005

Presente de Natal

O carro percorria as ruas, já quase desertas, em direcção a casa. No rádio a música teimava em recordar-lhe a quadra e não podia ser mesmo mais apropriada, não fosse o seu estado de espírito.

I’m driving home for Christmas
Oh, I can’t wait to see those faces
I’m driving home for Christmas, yea
Well I’m moving down that line
And it’s been so long
But I will be there…

Também ele conduzia em direcção a casa, sabendo contudo que não teria faces à sua espera. Desligou o rádio, aquela música estava a fazer-lhe mal. Distraidamente observava a correria das pessoas, os carros voavam mais depressa que o trenó do Pai Natal. Apenas ele guiava com uma calma singular, afinal não haveria “those faces” á sua espera. A família bem que tinha insistido para que ele fosse jantar, e a muito custo conseguiu inventar uma desculpa para não ir. Estou de serviço, foi a melhor desculpa que arranjou. Valeu-lhe ter uma daquelas profissões que não se compadecem com fins-de-semana ou quadras festivas. Mas agora pesava-lhe a consciência, não imaginava como enfrentar a família caso viessem a descobrir a sua mentira, tinha a certeza que seria uma má, muito má companhia nessa noite.

Á medida que ia atravessando a cidade via como as ruas ficavam progressivamente mais vazias. Uma bola vermelha pendurada num mastro verde, que lhe lembrou uma escanzelada e desajeitada árvore de natal, obrigou-o a parar. Deveria virar à direita naquele semáforo, mas naquela noite apetecia-lhe seguir em frente, assim sempre demoraria mais tempo a chegar a casa. Ao fundo da rua virou finalmente à direita para seguir ao longo da marginal. Por momentos teve a tentação de baixar o vidro para ouvir o embalar do mar, olhou o termómetro no painel do carro que indicava a temperatura exterior. Estava frio, muito frio, mas afinal era Natal, que mais poderia esperar naquela parte do mundo, certamente não seria uma noite de calor, nem atmosférico nem humano. Seguiu lentamente ao longo da marginal, apreciando o reflexo das estrelas sobre o mar. Ao longe o Farol, cumpria a sua missão de conduzir os marinheiros, tal qual outra estrela que muitos anos antes conduziu os Três Reis Magos até Belém. Na verdade aquele Farol era, para muitos marinheiros, a Estrela que os guiava à salvação, rumo a um porto seguro.

Questionou-se se seguisse a luz daquela estrela, ela também o conduziria a um porto seguro, aos braços daquela que ele amava e desejava.

Ilusão, pura ilusão, apenas mais um conto de Natal um fábula como tantas outras que já inventara para não perder a esperança, a mesma esperança que agora se desvanecia á sua frente numa curva à esquerda que sabia o afastaria definitivamente da beira-mar, da luz da estrela e do seu sonho.

Voltou a penetrar nas ruas pejadas de casas, cada vez mais desertas até que estacionou à frente de uma simpática casa, numa não menos simpática urbanização. A casa era baixa, mas suficientemente alta para albergar dois pisos. Completamente às escuras, parecia que o espírito do Natal não tinha por ali passado, o que era estranho, pois no resto da urbanização todas a vivendas estavam iluminadas por milhares de luzes coloridas que piscavam de forma mais ou menos organizada.

Era a sua casa, uma casa vazia, deprimida, oca, uma casa sem alegria, sem sorrisos, sem amor. Entrou, acendeu as luzes, atirou o casaco à cadeira que repousava no átrio. Subiu as escadas, percorreu o pequeno corredor e abriu a porta do quarto.

A cama estava feita, aberta num canto à sua espera. Tudo impecável, como era hábito da Dª Amélia a sua emprega. Até lhe deixara uma nota sobre a cama que dizia: “Feliz Natal. Que encontre a paz que necessita”

Como ela o conhecia… sabia que nessa noite ele não teria paz, antes pelo contrário. Recordava ainda o Natal anterior e o passeio com os seus sobrinhos ao parque para ver o abeto gigante enfeitado que era a grande atracção. Não conseguia esquecer os seus olhos verdes e os lábios carmim, o sorriso que trocaram e tudo o que se tinha seguido, até que ela desaparecera.

Dirigiu-se à casa de bano e abriu a torneira do chuveiro para que a água quente fluísse. Atirou a roupa para cima do cesto da roupa suja e deliciou-se com o calor exterior, já que interiormente continuava a sentir-se gelado.

Depois do banho vestiu uma grossa camisola de lã, uns jeans e uns sapatos desportivos que contrastavam estrondosamente com a formalidade da roupa que agora repousava no cesto da casa de banho. Passou pela cozinha, bebeu um sumo e comeu uma daquelas refeições super rápidas que se cozinham em minutos no microondas.

Enfiou a louça na máquina de dirigiu-se à sala. A lareira apagada testemunhava a falta de calor que habitava aquele espaço. Nem chegou a sentar-se, não lhe apetecia estar ali sozinho. Dirigiu-se à porta. No átrio apanhou uma parca que vestiu por cima da camisola de lã. Abriu a porta e sentiu o frio da noite mordiscar-lhe o rosto. Puxou o fecho da camisola que agora lhe protegia o pescoço até ao queixo. Dirigiu-se ao carro e partiu. Seguiu sem rumo mas o destino pré marcado. Deambulou por imenso tempo pela cidade, observando as luzes acesas nas janelas, as luzinhas brilhantes de declaram ao mundo a alegria dos ocupantes daqueles lares, ainda que parte dessa alegria fosse ilusão, a ilusão de uma noite.

Por fim acabou por estacionar o carro junto ao parque do abeto gigante. Tal como no ano anterior, a iluminação pendurada nos seus ramos destacava-se no céu. Saiu do carro e deu uma volta ao parque antes de entrar. Estava deserto. Sabia que dentro de algumas horas estaria repleto de pessoas que por tradição ali se juntavam depois da não menos tradicional missa do galo. Mas agora estava vazio, e até o preferia assim. Não queria ninguém para testemunhar a sua tristeza.

Por fim acabou por ganhar a luta que travava consigo próprio e seguiu o carreiro de terra que conduzia até à base do “Pinheiro de Natal”. Tal como nos anos anteriores a sua base estava cheia de caixas embrulhadas em resplandecente papel de fantasia com motivos natalícios, mas recheadas com o mesmo vazio que o recheava a ela.

Por momentos identificou-se com aquelas caixas, sem nada no seu interior, sem mãos para as acariciarem fogosamente à procura de uma alegria que brotaria do seu interior, eram simplesmente caixas vazias e sós, como ele.

Nesse momento duas lágrimas brotaram dos seus olhos e um soluço dorido soltou-se dos seus lábios. Como desejava não estar ali sozinho esse ano. Onde estariam aquela que tinha acendido nele a chama do amor, ali mesmo naquele local há um ano. Por que teria ela desaparecido, sem uma única explicação?

Ela sempre permanecera misteriosa para ele e ainda recordava com dor o dia em que lhe tentou ligar para o telemóvel e recebeu a mensagem “O telemóvel que ligou está desligado”. O que a mensagem automática se esquecera de dizer é que “e nunca vai voltar a ser ligado”.

Que teria ele feito. Tinham-se encontrado algumas vezes e nada fazia prever aquele final. No dia fatídico tinha mesmo comprado algo que tencionava dar-lhe no momento em que estava disposto a fazer um pedido especial. Mas tudo ficara mesmo por aí, pela vontade, pois ela tinha desaparecido, da mesma forma súbita como aparecera na sua vida, aos pés daquele abeto.

Ouviu passos atrás de si. Estava na hora do parque começar a encher. Limpou as lágrimas com as mãos tentando esconder a sua dor. Estava na hora de partir.

Foi então que voz disse:

- Feliz Natal, Bruno! Imaginei que te encontraria aqui.

Conhecia aquela voz, jamais seria capaz de a esquecer. Virou-se lentamente com medo que não fosse mais uma ilusão. Mas não ali estava ela, linda, como a recordava. Ela pareceu adivinhar a questão que lhe atormentava o espírito: o fatídico “porquê”. Então ela respondeu:

- Porque te amava Bruno, amava-te e amo-te demais, e tenho medo.

Nesse momento ele sorriu, pegou-lhe na mão, beijou-lhe a palma. Olhou profundamente os seus olhos verdes e dizendo.

-Eu também tenho medo, mas será mais fácil se o enfrentarmos juntos, não te parece?

Ela sorriu e anuiu com a cabeça. Ele colocou a mão sobre o ombro dela, beijou-a delicadamente e partiram juntos, enquanto o parque se enchia com a vida e alegria de dezenas de crianças que corriam em direcção ao espírito de natal.

Aquele Amor era o melhor Presente de Natal que alguma tinha recebido.

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Esta é a minha mensagem de natal, uma mensagem de esperança, uma mensagem de amor e alegria para todos os que visitam o farol e que, tal como o Faroleiro, amam a magia que se esconde nas palavras.

Feliz Natal e Um Bom Ano.


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