31 de julho de 2004

Carta de Amor

Meu amor, escrevo-te para dizer aquilo que já sabes, acho que sempre soubeste, ou soubemos os dois, desde o primeiro momento, desde as primeiras palavras, embora tenhamos tentado resistir e continuemos a resistir. Procuramos não embarcar num love boat com destino incerto em mar tempestuoso. Fazemos por manter acesa a luz da dúvida, para que a luz do amor não nos ofusque a razão e a sensação de segurança que nos proporciona... ainda que ilusória.

Deixo-me perder o olhar no horizonte, onde sulca as ondas de um mar de recordações, recordações dos teus lábios, dos beijos trocados publicamente num banco de jardim, das carícias, de perder os meus dedos nos teus cabelos, de uma sobremesa comida a dois e das emoções que fluíam das palavras, dos teus olhos transparentes, dos sorrisos e gestos.

Na ponta dos meus dedos o doce sabor da tua pele que percorri como uma criança que sente o prazer da descoberta pela primeira vez. Na palma da mão, gravadas a fogo, tenho ainda as marcas suaves da tua pele que teima em não descolar da minha.

Nos meus ouvidos, ela ainda canta aquela canção, aquela que fala..., tu sabes. Recordo ainda a dor da despedida e a forma com te aninhaste no meu colo naquele momento, apesar do desconforto do local. Aquele foi sem dúvida um momento mágico, dos mais intensos que já vivi e alguma vez viverei. A sabedoria da idade dá-nos esta capacidade de sentir com outro esplendor a magia destes momentos fugitivos.

Mas agora, agora sinto o medo de te perder, que te vais afastar de mim, pouco a pouco, dia após dia e sinto-me impotente para travar esse afastamento. Agarro com força as tuas mãos, aperto-as cegamente e tento não te deixar partir, mas o esforço parece-me sempre infrutífero, sinto-te escorrer por entre os dedos e loucamente aperto mais um pouco, na esperança de te conseguir deter.

Vejo-te caminhar em direcção à estação e corro atrás de ti. Entro na gare a tempo de te ver entrar naquele comboio voador que te levará para um destino incerto de solidão ou paixão. Não resisto e grito o teu nome, grito que te amo. Da janela atiras-me um beijo que tento desvairadamente apanhar.

O chefe da estação dá o sinal de partida, o comboio inicia a sua marcha lenta que te levará de mim. Nesse momento corro, corro a gritar o teu nome e como te amo, tento ainda apanhar o comboio, mas tropeço e caio. Tropeço nos sentimentos que bem conheces, naqueles sentimentos puros e sinceros que te tocam a alma, e te levam a dizer: "és muito querido".

Tento levantar-me e continuar a correr, mas o comboio sobe já, em direcção às estrelas, tento ganhar asas e voar, mas a força de gravidade é ainda muito forte, por mais que bata as asas os pés não descolam do chão.

E tu vais, insegura, mas protegida em direcção às estrelas, olhando de vez em quando pela janela. Compreendo a tua partida. Compreendo, mas compreende tu também, que não sou capaz de aceitar, de me resignar ou capitular.

Penso em ti todos os dias, embora nem sempre te o diga, mas a verdade é que são teus os meus primeiros pensamentos pela manhã e em todos as horas do dia. No fim do dia, cansado, deito-me e dou voltas e voltas procurando esquecer-te, até que por fim te sinto. Encaixas-te em mim, apoias as tuas costas contra o meu peito, o teu cabelo perfumado de camomila e maçã toma conta do meu olfacto, quando a tua cabeça se aninha junto a mim. Abraço-te. Percorro com a palma da mão o teu corpo, numa viagem com início na face, descobrindo maravilhas nos teus lábios, pescoço e peito, até ao umbigo, onde por fim, repousa beijada pela palma da tua.

Adormeço assim, na esperança que ao acordar continues ali, abraçada a mim, mas acordo apenas com a lembrança de um sonho, um sonho que tenho esperança e confiança, algum dia deixe de o ser, porque...

...te Amo.


30 de julho de 2004

A Despedida

 Nesse momento o visitante estendeu a mão a Francisco, dizendo:

- Caro Francisco, agora tenho de ir, mas não se preocupe que o assunto vai ficar resolvido a contento do Faroleiro e do povo da vila.

Dizendo isto, levantou-se e saiu. Nesse momento entra a bela esposa de Francisco, que de longe observava a conversa entre os dois intrigada.

- Francisco, quem é aquele senhor?

- Querida, para te dizer a verdade não sei. Está aqui na vila de férias e sei que se interessa pelo caso do nosso Faroleiro. Tropecei com ele na entrada dos correios, quando ele ia enviar várias cartas para o Ministério. Agora disponibilizou-se para nos ajudar na nossa luta e sinto pela sua confiança que é capaz de inverter o sentido desta triste história.

- Sabes Francisco, a cara dele não me é estranha e não é daqui, da vila, que o conheço, tenho a certeza, mas não consigo atribuir-lhe um espaço ou tempo...

- Pois querida, essa sensação também eu tenho, mas tal como tu não consigo saber de onde o conheço.

- Então agora só te resta esperar que o milagre aconteça.

Dizendo isto ela deslizou a sua mão pela face de Francisco, que retribuiu a doçura daquele gesto com um beijo carinhoso na palma da sua mão.

Os dias seguintes foram de uma calma mortal. A vida continuava apenas a intervalos regulares quando a noite se abatia sobre a vila e o Faroleiro abandonava o farol para se ir encontrar com a sua sereia.

Ela sentindo que o momento da separação se aproximava, agarrava o seu faroleiro com mais força a cada encontro e sentia a sua dor em cada abraço e beijo.

Uma noite ela confessou ter pedido para deixar o mar e ir viver para terra, queria acompanha-lo para a cidade. Segundo lhe tinham dito, não seria a primeira sereia a abandonar o mar, já muitos anos antes acontecera algo semelhante.

O Faroleiro olhando para ela com o mar a escorrer-lhe dos olhos, disse-lhe que aquela era a maior prova de amor que ela lhe poderia dar, mas que ele não podia aceitar, pois sabia que no coração dela o amor ao mar, à liberdade de nadar entre corais, procurar tesouros em navios afundados, plantar bonitos jardins de algas, acender luzinhas nos corações de marinheiros perdidos, seria um ferida muda mas nunca sarada.

Então num arrebato de coragem disse-lhe:

- Minha querida, o mar és tu e tu és o mar e isso não se pode desfazer. O meu amor por ti é imenso como este oceano que agora nos banha, tal como o desejo de ter sempre a meu lado. Depois da prova de amor que me deste só posso dar-te uma maior, pois se é necessário muito amor para querer aprisionar para sempre alguém ao pé de nós, muito mais amor é necessário para libertar essa pessoa se sentirmos que assim ela nunca poderá ser realmente feliz, porque algum espinho permanecerá sempre cravado no seu coração.

Ela deixou escapar pelos olhos transparentes algum do mar que lhe inundava a alma.

Tinha compreendido a bonita luzinha de amor e abnegação que nas suas palavras brilhava.


Dias que Correm

Fui ali ler um blog e na lista de "amigos" encontrei um que se chamava: Dias que correm. A verdade é que nem fui visitar este cantinho, mas deu-me para escrever isto:

Dias que correm
Sem parar
Sem olhar
Sem acreditar
Sem sonhar

Dias que correm
Como um rio
Imparável
Imperturbável
Incansável
Quase livre

Dias que correm
Uma vida que os acompanha
Vivida em solidão
Mas com a esperança
E o Desejo
De uma nova emoção

Dias que correm
Vidas mortas
Olhares cegos
Ouvidos surdos
Bocas caladas
Pensamentos estúpidos

Dias que correm
E jamais
Voltam para trás.


As Cartas

As cartas atingiram o Ministério como uma violenta trovoada. Chegavam às centenas todos os dias. No seu interior apenas a identificação do cidadão e por entre os textos diferenciados pelo gosto e inspiração do autor uma mensagem:

"Eu vi uma sereia!"

Aquela chuva torrencial de cartas que todos os dias se abatia sobre o Ministério, começou a perturbar o normal funcionamento dos serviços. Foi necessário destacar mais pessoal para o serviço de selecção e registo de correspondência, mas todos os dias pontualmente o aguaceiro aparecia.

O facto foi levado ao conhecimento do ministro que pronta e precipitadamente deu a solução:

- Destruam todas as cartas que tenham na morada do remetente o nome da vila!

- Mas senhor ministro... - ainda gaguejou um assessor.

- Não há mas, nem meio mas, afinal que manda nesta casa?

- É o senhor ministro! - responderam os meninos em coro.

A assim foi, nos dias seguintes todas as cartas que chegavam ao ministério provenientes da vila eram entregues ao Sr. José, com a indicação de que deveriam ser destruídas.

O tempo passava e o Ministério não dava sinais. Francisco intrigado com aquela ausência de notícias, decide enviar um ofício ao ministério, questionando a manutenção da decisão inicial de afastar permanentemente o faroleiro da vila.

A resposta, foi admiravelmente rápida para a burocracia, que se sabia imperar nos ministérios da república. E lá estava a confirmação, o Faroleiro seria afastado do seu posto no farol, por alegadamente "não se encontrar em perfeitas condições físicas e psicológicas para assegurar uma função de vital importância para a segurança marítima".

E as cartas, interrogava-se Francisco, não mencionam as cartas, nada!

Entretanto as viagens do visitante misterioso ao farol tornaram-se mais frequentes, as conversas com o Faroleiro, pareciam agradar ao visitante, que passava longas tardes sentado nas cadeiras colocadas junto ao farol, observando o mar e ouvindo as história que este lhe contava.

Intrigado com o destino das cartas, Francisco decide telefonar directamente para o ministério, dizendo que tinha enviado uma carta para lá por causa do assunto do Faroleiro da Vila, Depois de lhe transferirem a chamada uma dezena de vezes entre gabinetes, finalmente alguém lhe iria dar uma resposta:

- Nos serviços do ministério nunca foi recepcionada qualquer carta sua sobre o assunto que me relata.

Francisco insistia,

- Mas foi correio registado...

- Já lhe disse, caro senhor que aqui não foi recepcionada qualquer carta sua sobre esse assunto.
Aquela voz parecia uma gravação, não sabia dizer mais nada.

Cada vez mais intrigado, instigou uns amigos a segurem-lhe os passos e para seu espanto a resposta dada a todos foi igual. Foi ao posto dos correios e através de uns conhecimentos conseguiu que lhe confirmassem que as cartas tinham sido entregues, pelo menos era isso que indicavam os registos existente nos serviços centrais.

Quando saia dos correios, tentando encaixar as novas informações num puzzle, sem guia que não fazia sentido, choca de frente com o visitante do farol e quase o derruba. Pelo menos conseguiu espalhar pelo chão o conjunto de cartas que este levava na mão.

Prontamente pediu desculpas e começou a apanhar as cartas do chão. Não pode deixar de reparar que eram todas dirigidas ao Ministério. Fez um sorriso de desencanto e disse,

- Não adianta enviar as cartas, a minha foi registada e o mesmo assim o Ministério diz que nunca a recebeu. Perde o seu tempo caro, amigo.

Nesse momento o visitante mostrou-se particularmente interessado e intrigado por aquelas palavras.

- Se o Sr. Presidente não estiver muito ocupado, poderia explicar-me melhor esse assunto. Se puder aguardar um momento, insisto em ir enviar este correio, primeiro.

- Vá que depois de desilusão que acabo de ter, não tenho cabeça para fazer mais nada hoje. Pode ser que a conversa me faça bem e me anime.

Depois de enviar o correio lá seguiram em direcção à esplanada do restaurante do hotel, onde se sentaram a saborear um cocktail de frutas.

Francisco explicou toda a situação, as cartas enviadas e nunca recebidas, o desalento que tomara conta de si, as forças que sentia lhe estavam a faltar para continuar aquela luta desigual, o amor daqueles dois que agora, mais do que nunca, estava em perigo.

O visitante ouviu com atenção toda a história e por fim disse-lhe,

- Sabe Sr. Presidente, posso trata-lo por Francisco?

Francisco anuiu com a cabeça.

- Então Francisco, ainda não é tempo de perder a esperança, sabe que eu tenho falado com o Faroleiro e também acredito na história dele.

- Então também viu... - ia a dizer Francisco, quando um impulso o fez parar.

- Vi o quê?

Vendo que ele não sabia da existência do cristais, atalhou,

- Viu que ele não está maluco?

- Sim, isso é óbvio, até para o olhar mais inexperiente ou desatento. Mas como lhe dizia, eu acredito na sua história e estou disposto a ajudar, mas tem de me prometer que não divulgará nada desta nossa conversa nem de onde provém a ajuda.

- Isso está prometido ? disse Francisco ao mesmo tempo que na sua face um sorriso ganhava nova vida...

... era um sorriso alimentado pela luz da esperança.


29 de julho de 2004

A Segunda Visita

Naquela segunda-feira, o resto do dia foi banal na vila. O único movimento estranho registado foi uma corrida anormal para o posto de correio, nessa tarde, para o envio de cartas para o Ministério.

Desconhecendo os resultados da reunião, o Faroleiro continuava as suas tarefas no farol, olhando frequentemente o céu e o relógio na esperança da chegada da noite para ir ao encontro da sua Sereia, que aconteceu segundo o previsto.

Na manhã de terça-feira, estava entregue ao cuidado do seu jardim, quando viu um carro de luxo, grande e preto, aproximar-se da entrada do farol. Pensou que seria alguém do Ministério, mas depois verificou que não podia ser, pois o carro tinha um único ocupante e os senhores do Ministério nunca viriam sem motorista.

Dele desceu o misterioso senhor que no dia anterior Francisco tinha visto na igreja a tomar notas num caderninho. Vestia uma roupa em tudo semelhante à que usara no dia anterior na reunião da igreja, só a cor era diferente, hoje era azul, a combinar com uns sapatos vela da mesma cor.

Aproximou-se do Faroleiro e começou o diálogo entre ambos:

- Bom-dia.

- Bom-dia.

- Sabe, costumo passar as minhas férias aqui na vila, mas nunca vim até aqui a cima. Hoje apeteceu-me ver a vista de aqui. Acha que posso?

- A vista é livre - respondeu o faroleiro, não querendo adiantar a conversa. Aquela visita era estranha e logo agora com a história da Sereia...

- Bem isto tem uma vista impressionante. Sabe quando olho este mar, até se me enche o coração.

- Pois, sobre algumas pessoas tem esse efeito, é necessário é ter sensibilidade para poder apreciar.

Será que podia visitar o farol.

- Pode, tem é de preencher um papel, sabe como é, burocracias...

O visitante preencheu o formulário e lá partiram escada acima em direcção ao varandim. A conversa entre ambos animou, afinal tinham mais em comum do que à primeira vista parecia.

Aproximava-se a hora de almoço e o visitante disse que teria que ir, esperavam-no para almoçar. Saiu em direcção ao carro depois de trocar cumprimentos com o faroleiro.

Já no interior do carro, puxou uma elegante pasta de cabedal que repousava sobre o banco ao seu lado. Do seu interior retirou um bloco de notas, também forrado a pele a fazer conjunto com a pasta.

Abriu o bloco e com uma caneta de aparo anotou algo utilizando uns rabiscos semelhantes aos utilizados por psicólogos e psiquiatras.

No fim, uma frase que sublinhou duplamente: 
 
"Insanidade?  Negativo."

Rodou a chave e partiu acenando ao Faroleiro.


A Solução

Ao apelo de Francisco sobre possíveis soluções, choveram na igreja ideias.

- Vamos cortar uma estrada!

- Podemos fazer uma greve!

- Talvez chamar a televisão, as rádios e os jornais!

- Podemos fazer uma manifestação em frente à Câmara, ou melhor, em frente ao Governo Civil!

- Nada disso o melhor é mesmo em frente ao Ministério, assim ouvem-nos de certeza!
Francisco acalmou os ânimos daquela gente,

- Calma amigos, calma, todas as vossas ideias são boas, mas temos de ter algum cuidado, pois o tema é delicado. Como vamos dizer a pessoas cegas que estamos a defender o amor de um Faroleiro com uma Sereia, quando eles não acreditam?

Nesse momento irrompe pela igreja a voz do desbocado João Areias,

- Temos de arranjar uma sereia para mostrar a esses descrentes, talvez seja melhor ir-mos todos à pesca.

No final riu, enquanto toda a igreja permaneceu em silêncio. Sentindo o gélido olhar que sobre ele se abateu como uma onda, baixou os olhos que enterrou no chão com tal violência que poder-se-ia jurar que chegou ao outro lado do globo.

Francisco tomou a palavra para dizer,

- Bem, não creio que essa seja a solução, mas...

Nesse momento parou para ouvir uma criança que na primeira fila insistia em dizer algo à sua mãe, que ocupada com na conversa não lhe prestava atenção. Francisco desceu do púlpito e chegou junto da criança, enquanto a igreja toda se calava, expectante do acto do Presidente da Junta.

Quando chegou junto da criança, Francisco perguntou-lhe tão delicadamente quando pode,

- Que estavas a tentar dizer à tua mãe, diz-me...

- Eu também vi uma sereia! - disse a criança em toda a sua inocência.

Nesse momento um brilho intenso surgiu nos olhos de Francisco. Lembrou a conversa durante a caminhada entre o Ocaso e o hotel com o Júlio e o Carlinhos. O Carlinhos também tinha dito aquilo, que vira uma sereia. Era isso. Estava ali a sua solução.

Voltou para o púlpito e com o brilho do seu olhar a iluminar toda a igreja comunicou,

- As palavras desta criança, o comentário do João e uma conversa com o Carlos e o Júlio lembraram-me que o importante é fazer acreditar. Esta criança acredita que viu uma sereia, o Carlos também, e todos vós acreditais, porque eu, embora sem a ver, também acredito, por isso temos de fazer os senhores do Ministério acreditar, essa é a solução.
Proponho que todos os presentes nesta sala, a título individual envie uma carta ao Ministério a informar que avistaram uma sereia aqui na nossa costa.
Quem se atreverá a duvidar da palavra de um povo inteiro?

Do fundo da sala alguém grita,

- Os cegos do Ministério.

Francisco sem perder a calma, logo responde,

- Até pode ser verdade, mas alguém tem uma ideia melhor?

A resposta foi avassaladora.

- Não!

Francisco deu a reunião por terminada e as pessoas começaram a sair da igreja.

Reparou ainda que ao fundo um senhor elegante, bem vestido, com roupa desportiva, de uma marca com motivos náuticos, tomava notas para um pequeno caderninho que segurava com uma das mãos. Aquela cara não se era desconhecida, mas não o conseguia enquadrar num espaço ou tempo especifico.

Durante a sua observação aproximou-se dele Dª Pilar que trazia pela mão a neta. Chegando junto dele, disse-lhe,

- Francisco, meu filho, eu sempre soube que você era uma boa alma e este gesto seu é muito importante para o amor daqueles dois.

Muito emocionada, continuou a falar,

- E olhe que lho diz alguém que teve de abandonar o mar há muitos anos, por amor.

Nesse momento olhando a face emocionada de Dª Pilar, Francisco comoveu-se e da sua vista esquerda uma lágrima iniciou uma caminhada em direcção ao chão.
Dª Pilar fez-lhe sinal para se baixar e com mão limpou-lhe a lágrima que apressava seguia o seu destino. Depois inclinando-lhe o rosto deu-lhe um beijo na face enquanto lhe agarrava uma das mãos.

Seguidamente, virou-se e na companhia da sua neta partiu pelo corredor central da igreja em direcção à rua. Francisco sentiu algo na sua mão. Abriu a mão e na sua palma, viu um cristal com a lágrima que momentos antes escorria pela sua cara, encerrada no seu interior. Era precisamente igual aos cristais que o seu amigo Faroleiro guardava com tanta devoção.

Levantou os olhos em direcção ao corredor central. Dª Pilar parou ao sentir o seu olhar tocar-lhe as costas, virou a cabeça para ele e com um sorriso piscou-lhe um olho.

Nesse momento Francisco percebeu a sensibilidade das suas palavras à entrada do mercado dias atrás, a sua afirmação daquele dia e o amor que a sua filha nutria pelo mar, era tudo uma questão genética, afinal ela era também uma criatura do mar.

Guardou com cuidado aquela preciosidade e saiu da igreja sentido que a luz o tinha tocado.


28 de julho de 2004

Porto de Abrigo

Pétalas de um sonho
Que desfolho com prazer
Momentos de uma vida
Que anseio viver.
Vem
Vem e não vaciles
Doce sensação de prazer
Invade a minha alma
Que anseia por te ter
Não pares agora
Segue
Mesmo sem sentido
Procura a luz que te adora
Dá-me um porto de abrigo.
Sem expectativas
Sem ilusões
Entrego-me apenas
Às tuas paixões.


O Medo

- Que receias tu? - Perguntou-lhe ele com uma expressão triste.

Ela olhando para ele com um sorriso meigo e compreensivo, respondeu: 

- As palavras!

- As palavras?! - mostrava ele o seu ar mais espantado.

-Sim as palavras, porque para as dizer tenho de mergulhar profundamente na minha alma.


27 de julho de 2004

Sonhar e Amar

Nos últimos dias, tem-se falado neste cantinho de sonhos.
Queria escrever algo inspiradíssimo sobre sonhos, mas apenas me saiu isto, um singelo tributo aos sonhadores(as).


Um sonho vivido acordado
Uma vida vivida sem sonhar
A dor de viver amargado
Pelo desejo de amar
Sonhar e amar
Viver e criar
Lutar, lutar, lutar,
E não se deixar enganar
Correr e saltar
Procurar sem parar
E ao encontrar
Mergulhar
E nadar, nadar
Nadar sem parar
Até a Sereia encontrar
E depois?

Depois
Amar, amar e amar
Sem parar
Até o sonho acabar
Se alguma vez
Terminar...


A Reunião

Chegara finalmente o dia da reunião. A escolha da segunda-feira tinha sido propositada. Aquele era um dia mais calmo na vila, depois da correria dos domingos, em que a vila se enchia de banhistas de fim-de-semana, que procuram aliviar o stress e ganhar força para mais uma semana se trabalho sob o calor sufocante do verão.

Dez horas da manhã. A população acotovelava-se para entrar no salão do grupo recreativo. Lá dentro, uma sala cheia, tão cheia que até as paredes pareciam arquear com a pressão daquela massa humana. A curiosidade tinha cumprido primorosamente a sua missão. Todos sabiam qual o tema da reunião, mas mesmo assim, ninguém queria perder uma palavra que fosse, estavam suspensos daquilo que o Presidente da Junta iria dizer sobre o Faroleiro e a sua Sereia.

Na primeira fila, o padre Mário acompanhado de outros madrugadores conversavam animadamente.

Francisco chamou Júlio e perguntou-lhe como estava a situação lá fora.
Falando-lhe ao ouvido, disse:

- Complicada, muito complicada. Está um mar de gente do lado de fora. A confusão é grande, todos querem entrar, não sei como vamos fazer...

Francisco, notoriamente preocupado, caminhava de um lado para o outro da sala, enquanto procurava uma solução. Talvez colocar um megafone no exterior para que todos pudessem ouvir, lembrou.

Tenha de dizer algo. Dirigiu-se para um canto da sala onde um estrado usado como pódio nas competições da terra permanecia em repouso. Subiu para o palanque improvisado e o silêncio tomou conta da sala.

- Amigos, temos um problema. Estamos todos muito apertados aqui dentro, e lá fora está um mar de gente para entrar, nestas condições...

Nesse momento do seu lugar na primeira fila o padre Mário faz-lhe um sinal muito expressivo indicando que desejava falar com ele com urgência.

- Desculpem-me um momento, mas aqui o nosso pároco requer a minha atenção, entretanto se alguém tiver uma solução...
Desceu do pódio e aproximou-se do Padre Mário, que lhe disse:

- Olhe lá Francisco, será que esta gente toda não cabe na igreja? Podia fazer-se lá a reunião e o problema estava resolvido.

Francisco estava habituado aos comportamentos, aparentemente estranhos do padre Mário, mas para aquele é que não estava preparado. Uma reunião na igreja! Essa era uma coisa nunca vista!

- Mas padre Mário... parece-lhe apropriado? - disse Francisco com um ar meio apatetado.

- Meu filho, Deus não escreve direito por linhas tortas? Acho que ele não se vai importar de ver a igreja repleta de pessoas, o que, aliás já não acontece à muito tempo. Além disso o motivo desta reunião não é a sublimação do amor, do amor entre duas criaturas de Deus? Só se o meu amigo não se sentir à vontade a falar do púlpito, pois nesse caso...

Padre Mário diz a última frase com uma expressão traquina e ao mesmo tempo desafiadora. Francisco sorriu e visivelmente emocionado apertou a mão ao padre Mário dizendo:

- Nem sei como lhe agradecer...

- Não se preocupe Francisco, que eu hei-de lembra-lo quando a igreja necessitar de alguma reparação. - disse o padre Mário fazendo mais uma daquelas expressões de criança travessa.

Francisco voltou a subir para o palanque e avisou que a reunião teria lugar na igreja, onde estariam mais confortáveis.

Foi uma correria, a daquela gente toda em direcção à igreja. Padre Mário, um fã dos ditados populares, aproveitou para deliciar com mais um, aqueles que a seu lado se encontravam.

- Vejam como o povo tem razão, "os primeiros são os últimos e os últimos são os primeiros". Aqui dentro éramos os primeiros mas agora os que estavam lá fora serão os primeiros a chegar à igreja.

Com a igreja repleta, como nunca se vira na terra, Francisco subiu ao púlpito. Olhou com atenção aquela imensidão de gente que ansiava pelas suas palavras.

Reparou que estavam lá todas as pessoas da terra. Os estabelecimentos estavam todos fechados e as ruas estariam desertas, não fossem alguns turistas que teimavam em procurar um lugar para tomar algo antes de se irem estender no areal. Viu também algumas caras desconhecidas, mas que depressa associou a pessoas de cidade que tinham casa de férias ali na vila.

Do alto do púlpito do padre Mário, começou:

- Bem, hoje pode dizer-se que sou um político satisfeito, pois nunca pensei fazer um comício com uma tal assistência, se os Srs. políticos da cidade me vissem agora?
Uma gargalhada geral irrompeu na igreja ocupando o pouco espaço disponível. Francisco dirigiu o olhar para o padre Mário que também ria.

- Desculpe padre, mas uma assistência assim é o desejo de qualquer um...

A isto anuiu o padre com cabeça, também ele desejava ter a igreja assim decorada todos os dias.

Virando-se novamente para as pessoas, que à sua frente, aguardavam pelas suas palavras, continuou,

- Não vou alongar-me com considerações sobre o motivo desta reunião, penso que todos o sabem. Trata-se da tentativa do Ministério para levar da vila o nosso Faroleiro, que como também sabem não pode partir, porque assim, teria de abandonar o amor da sua Sereia. Sei também, porque até já conversei com alguns de vocês?

Neste momento procurou com olhar os pescadores com quem tinha conversado junto ao muro da marginal e observou como acenavam afirmativamente com a cabeça.

- Como estava a dizer, sei que alguns de vocês não acreditam em histórias de sereias e como tal, esta história de amor entre o Faroleiro e a Sereia não passa para vos de uma ilusão, um sonho. Mas é com o coração nas mãos...

Enquanto dizia isto, levou a mão ao peito, como se quisesse agarrar mesmo o coração.

-...que vos afirmo que a história daquele homem é verdadeira, tão verdadeira como eu estar aqui neste momento a falar para vós na igreja, quem diria não é? Eu vi com os meus próprios olhos e por mais de uma vez provas do que vos digo, não posso como devem compreender revelar mais pormenores, apenas vos peço para creditarem. Abram os olhos das vossas almas e deixem entrar a luz, a luz de um amor maior.

Neste momento os pescadores com quem conversara decidiram ajudar Francisco e começou a ouvir-se em vários pontos da igreja a frase.

- Se o Sr. Presidente diz que viu e acredita, a mim basta-me!

- A mim também! - disse outro.

-E a mim!

A frase repetiu-se tantas vezes, quantas as pessoas que enchiam a igreja.

Padre Mário não escondia a sua emoção, nunca tinha visto um discurso tão curto provocar tal onda de emoções. Se calhar era isso mesmo que aquela gente ansiava, ter algo em que acreditar - pensou.

Ultrapassado o clímax do momento, Francisco continuou emocionado,

- O vosso apoio e a vossa confiança deixam-me emocionado, mas agora é necessário pensar o que podemos fazer para evitar a partida do faroleiro. O padre Mário sugeriu que apenas a união poderia evitar esta catástrofe.

Agora faltavam as sugestões daquele povo, que como luzinhas pequenas resplandecentes poderiam traçar uma via láctea em direcção à solução.


26 de julho de 2004

O Expoente Máximo da Comunicação

Estava aqui a ouvir isto e apeteceu-me colocar aqui a letra. É bonito quando se comunica sem dizer uma única palavra, é assim como uma luz que infelizmente, não atinge todos.


"When You Say Nothing At All"
(Ronan Keating)

It's amazing how you can speak right to my heart
Without saying a word, you can light up the dark
Try as I may, I could never explain
What I hear when you don't say a thing

The smile on your face lets me know that you need me
There's a truth in your eyes saying you'll never leave me
The touch of your hand says you'll catch me if ever I fall
You say it best when you say nothing at all

All day long I can hear people talking out loud
But when you hold me near, you drown out the crowd
Old Mr. Webster could never define
What's being said between your heart and mine

The smile on your face lets me know that you need me
There's a truth in your eyes saying you'll never leave me
The touch of your hand says you'll catch me if ever I fall
You say it best when you say nothing at all


The smile on your face lets me know that you need me
There's a truth in your eyes saying you'll never leave me

The touch of your hand says you'll catch me if ever I fall
You say it best when you say nothing at all


Novo Encontro

No caminho de volta ao farol, Francisco contou-lhe sobre a reunião com a população da vila, mas preferiu não antecipar mais nada, também não sabia muito bem o que aconteceria em seguida.

Chegados ao farol, Francisco despediu-se e partiu em direcção à vila, deixando o faroleiro a tratar do seu jardim e a sonhar com o próximo encontro com a sua sereia que iria ter lugar já nessa noite.

Já na vila, foi imediatamente interpelado por alguns pescadores, que sentados no muro da marginal comentavam as histórias da terra.

- Ora viva, se não é nosso Presidente da Junta, o homem que já sonha com sereias, como o nosso faroleiro. Ó Francisco diga-nos, acredita mesmo na história do faroleiro a ponto de convocar toda a povoação para uma reunião?

- Ora viva! Os senhores que são homens do mar vêm perguntar-me, logo a mim, um peixe da terra, se acredito em histórias de sereias?

- Olhe lá, nos juntos já temos mais anos de mar, do que você a sua digníssima esposa e os seus queridos filhos vão ter de vida e nunca vimos uma sereia, como quer que acreditemos?

- Isso lembra-me uma conversa que tive ontem com o nosso secretário, o Júlio e para vós não a vou repetir. Mas já que insistem, aqui vós deixo uma questão. Quando me pediram para interceder junto da Capitania por causa da intervenção naquele fundão que diziam existir na zona da costa por onde os barcos se faziam ao mar, porque diziam que gerava correntes fortes e remoinhos, eu não acreditei em vós?

- Sim, foi verdade! - responderam em uníssono.

- Alguma vez um vi aquele fundão?

- Não, nem nós vimos! Mas sentíamo-lo cada vez que os barcos se faziam ao mar.

- Pois meus amigos, eu também não vi a Sereia do nosso amigo Faroleiro, na verdade ele até mais amigo daqueles como vós que se aventuram no mar. Mas isso, não interessa. O que vos queria dizer é embora não tenha visto a sereia, como não vi o vosso fundão, vi algo que me fez sentir que ela existe, tal como vós sentis o vosso fundão, por isso, compreendeis que não possa duvidar nem por um momento.

Despedindo-se partiu em direcção a hotel, mas voltando-se para trás, ainda lhe deixou mais um pensamento,

- Já agora? conto com o vosso apoio na reunião, pois se não posso contar com as pessoas que acreditam no que apenas se sente, para aquela reunião, vai ser muito difícil.
Os pescadores ficaram ali a olhar uns para os outros, até que um dos mais idosos, disse,

- O homem tem razão, temos que o ajudar, logo nós que temos de acreditar com mais força que ninguém cada vez que saímos para o mar naquelas cascas de ovo.

Todos anuíram com a cabeça e continuaram à conversa, mas nenhum deles seria o mesmo depois daquela conversa.

A noite chegara e o faroleiro saiu ao encontro da sua sereia. A noite estava calma e húmida. Ao
longe ouvia-se a música de uma festa que uns jovens tinham organizado na praia, junto à marginal. Uma fogueira iluminava-lhes a noite, juntamente com a lua cheia.

Chegou ao recanto da praia recatado que a sua Sereia lhe tinha indicado e antes que pudesse sentar-se, ela emerge das águas. Correu para ela e ajudou-a a sentar no areal.

- Pensava que tinhas partido para sempre, que já não gostavas de mim, ou tinhas perdido a esperança. ? Disse ele.

- Nem penses nisso, sou muito teimosa, quando quero algo, não costumo desistir e não quero desistir de ti, nem do nosso amor.

- Ainda bem, assim fico mais descansado! Mas que te aconteceu ontem, não viste o meu sinal?

- Vi! Vi até duas vezes. Mas as marés vivas impediram-se de entrar na baía. Apenas pela manhã com a baixa-mar consegui chegar ao areal para te deixar a mensagem.

- Já pensaste como vai ser o nosso futuro? - perguntou ele.

- Não, não pensei, nem quero pensar, quero apenas aproveitar os momentos lindos que passo contigo e este amor que me enche a alma de felicidade e me dá força para continuar a viver na imensidão do mar. Tu fazes-me bem! E eu adoro-te.

- Eu também te adoro, minha Sereia! - disse ele, com uma lágrima pendurada no canto olho.

Ali ficaram a trocar carinhos e palavras doces até que a noite, mais uma vez, os avisou tinha chegado a hora de partir.

Ele beijou-a devagar e delicadamente, depois abraçaram-se. A intensidade daquele doce abraço fez nascer no horizonte a primeira luz. Ela desapareceu no mar e ele voltou feliz, mas já cheio de saudades para a vida de solidão no farol, mas agora sentia que não estava sozinho, a sua Sereia acompanhava-o onde quer que fosse.

Ela era a luz que lhe iluminava o caminho nos momentos mais escuros da sua caminhada pela vida.


25 de julho de 2004

Quero... e Não Quero (II)

Quero ler e escrever
Quero comer e beber
Quero correr, saltar, brincar, nadar
Quero voar e navegar
Quero ver, cheirar e tocar

Quero
e não quero

Não quero sobreviver
Não quero a dor
Não quero perder
Não quero desistir

Quero
e não quero

Quero procurar
Quero encontrar
Quero amar

Quero viver, viver, viver
Quero, quero, quero!


Novo Dia

Francisco acordara e abrira a janela. Era sábado. Decidiu ir visitar o Faroleiro e dar-lhe alguma esperança. Sabia que não podia contar-lhe tudo, mas pelo menos poderia dizer-lhe que estava a preparar algo e talvez conseguisse que ele ficasse pela vila como faroleiro.

Saiu e tomou o atalho em direcção ao farol. Ao chegar verificou que estava tudo fechado. Era estranho, àquela hora ele já deveria estar a tratar das flores do jardim.

Bateu à porta uma vez, outra, mais outra, mas do interior do farol apenas o silêncio, um silêncio vazio. Pensou que o seu amigo tivesse desistido e partido em direcção à secretária da cidade. Logo agora que ele tinha preparado a reunião.

Decidiu bater uma última vez. Bateu com mais violência, com tal violência que conseguiu finalmente acordar o Faroleiro que gritou de lá de dentro:

- Calma que ainda partem a porta e depois tenho os Srs. do Ministério à perna.

Francisco sorriu num misto de alegria e descanso, afinal ele não tinha partido.

Vestido com a roupa da noite, ele aparece por trás da porta e pergunta:

- Quem é?

- Sou eu, o Francisco. Vinha ver como estavas e contar-te as últimas notícias.

O Faroleiro abre a porta e cumprimenta Francisco que, ao olhar para ele com aquela roupa lhe atira imediatamente,

- Estás doente? Com essa roupa toda a esta hora da manhã!

O Faroleiro mandou-o entrar para a cozinha, apetecia-lhe comer e entretanto podia ir contando a história da noite anterior. Sentados à mesa o Faroleiro foi confidenciando a Francisco os acontecimentos da noite e a ausência da sua Sereia. Talvez ela já não gostasse dele, interrogava-se.

Naquele momento, Francisco esqueceu os motivos que o tinham levado até ao farol e concentrou-se no novo problema que lhe era colocado. A quem interessava agora uma reunião que poderia fazer o Faroleiro ficar na vila se a sua Sereia tinha partido. Reflectiu que tinha de fazer algo.

- Depois do pequeno-almoço iremos os dois até à praia dos namorados, pode ser que... - disse Francisco.

- Achas que vale mesmo a pena?

- Claro que sim. Acaba lá de comer e vamos.

O Faroleiro acabou de comer, tomou um banho, vestiu uma roupa fresca, lavada e partiram em direcção à praia dos namorados. Quando chegaram ao cume da falésia, de onde partiam as escadas que conduziam ao bonito e abrigado areal, viram numa ponta da praia um ajuntamento de pessoas que se acotovelava, apertava, saltava e atropelava para ver algo que estava no areal. Mesmo da posição sobranceira onde se encontravam não conseguiam ver o que espantaria aquela gente toda.

Olharam um para o outro e o Faroleiro sentiu um frio invadi-lo e um arrepio percorreu-lhe o corpo desde a ponta dos cabelos até à base dos pés. Pensamentos negativos preencheram o seu pensamento e desataram os dois a correr pela escadaria em direcção ao areal.

Chegados juntos das pessoas, que teimavam em não deixar aproximar ninguém Francisco gritou alto,

- Deixem passar que este é um assunto da Junta de Freguesia!

Algumas pessoas, estupefactas pela despropósito da frase foram afastadas pela força e finalmente conseguiram chegar-se à frente para ver o que estava no areal.

Depois de verem, olharam um para o outro e riram. Riram dos seus pensamentos e da aflição com que tinham descido a escadaria e percorrido o areal a correr. Riram da frase de Francisco, " um assunto da Junta de Freguesia". Era apenas um conjunto de belas conchas e pedrinhas de cores variadas que estavam dispostas sobre aquela parte do areal.

Depois de rirem com violência, algo na cabeça do Faroleiro disparou a sua atenção. Olhou novamente para aquele conjunto de conchas e pedras. Já faltavam algumas, possivelmente retiradas por alguma criança, mas havia algo que lhe era familiar. Pediu a Francisco se podia afastar um pouco as pessoas. Deu dois passos para trás e olhou o conjunto na sua globalidade com atenção.

A sua face iluminou-se com um enorme sorriso, que por momentos assustou Francisco pela sua intensidade. Que estaria ele a ver naquelas conchas e pedras. Levantou os olhos para Francisco e disse,

- Vamos que a nossa missão aqui terminou.

Sem perceber, Francisco seguiu-o em direcção à escadaria. Quando atingiram o cimo da falésia, Francisco perguntou então,

- Que havia naquelas conchas e pedras que te fez sorrir daquela maneira?

- Aquilo, meu amigo, era uma mensagem da minha Sereia, escrita num código semelhante ao que eu utilizo com a luz do farol para marcar o local dos nossos encontros. Ali estava indicado o local para o nosso encontro desta noite.

Francisco riu com vontade e entre as gargalhadas ainda teve forças para articular,

- Afinal eu tinha razão, se te envolve e ti e à Sereia, aquilo era um assunto da Junta de Freguesia.

Aquela luzinha iluminou uma gargalhada em ambos, que com esta comunhão reforçaram mais um pouco a sua amizade.


24 de julho de 2004

A Noite

Beberam os finos e comeram os caracóis, que serviram como um aperitivo para o jantar. Conversaram da terra, das guerras políticas e pouco mais.

Depois levantaram-se, Francisco foi pagar e partiram em direcção ao hotel. Pelo caminho, Francisco decide perguntar a Carlinhos a sua opinião sobre a história do Faroleiro.

- Então Carlos, diga-me lá o que pensa você desta história do nosso Faroleiro? Já ouviu falar, não ouviu.

- Já Sr. Presidente. É uma história muito bonita.

Júlio, decide entrar na conversa perguntando:

- Mas ó Carlinhos, tu acreditas que ele viu mesmo uma Sereia e que esta o visita?

- É claro que sim, eu também já vi uma!

Nesse momento nasce um sorriso na cara de Francisco e uma gargalhada sonora sai disparada da boca de Júlio.

Francisco não se contém e diz a Júlio.

- Ora Júlio, aqui tem você a prova que lhe faltava. O Carlos já viu uma. Aqui tem você alguém que vê com os olhos da alma, seu descrente.

Júlio não desarma e volta a inquirir Carlinhos.

- Então Carlinhos, descreve-nos lá a tua Sereia, como era ela?

- Ela linda - responde ele - tinha os cabelos loiros e os olhos azuis, aquele azul da piscina do hotel do Sr. Presidente.

- E onde a viu? - Continuava Júlio.

- Foi aqui mesmo na vila. Via duas vezes. A primeira foi no restaurante da praça, o do Sr. Joaquim Candeias. Fui lá fazer um recado e ela estava lá a almoçar com um grupo.

- E a segunda?

- Bem a segunda foi num dia de muito calor. Em andava pela praia e cruzei-me com ela que me perguntou as horas. Foi a única vez estive verdadeiramente perto dela.

Neste momento Júlio solta mais uma gargalhada, enquanto Francisco esboça um sorriso carinhoso.

- Afinal aqui a Sereia do Carlinhos tinha duas pernas! - Diz Júlio entre gargalhadas - Estás a ver como era a Sereia do nosso Carlinhos, Francisco!

Francisco sem perder o sorriso, apenas lhe diz.

- E quem lhe garante a ti que não era mesmo uma Sereia, Júlio. As sereias podem tomar muitas formas, que lho diga eu que encontrei a minha quando menos esperava. Pelo menos para Carlos era uma Sereia e isso é o que importa.

Seguiram caminho, Júlio continuava a rir enquanto Carlinhos repetia:

- Eu vi-a Sr. Presidente, era mesmo uma Sereia, era, era!

Chegados ao hotel foram ocupar uma mesa na esplanada. O final da tarde chegara, e o céu pintava-se agora de vários tons, laranja, amarelo, azul, branco e mais cinzento, ao longe, por força de uma nuvens que ameaçavam aproximar-se da costa.

Era lindo aquele pôr-do-sol, parecia querer coroar de glória aquele final de dia, um dia especial para Francisco, pois tinha visto aquilo que nenhum homem, bem, à excepção do seu amigo Faroleiro, com quem agora partilhava um segredo, tinha visto. Aquela história tinha-lhe aberto os olhos da almas e agora que tinha visto a luz, não queria jamais fechar-lhe os olhos.

Enquanto os três jantavam na esplanada do hotel, o Faroleiro, olhava o céu impaciente. Esperava desesperadamente a noite, queria enviar o sinal à sua sereia. Tinha de saber como estava ela. Aquele encontro fugaz da noite anterior tinha-o deixado perturbado. Como estaria ela a reagir à terrível notícia?

Lembrou que naquela noite estaria Lua Cheia e coincidiria com o período da praia-mar. O mar agitado fazia antever o perigo de marés vivas mais fortes do que o normal.

Depois de considerar todos estes elementos, escolheu o local para o encontro, seria a praia dos namorados. O relevo da costa e as rochas submersas formavam naquela praia uma pequena baía em forma de coração. A princípio chamaram-lhe praia do amor, mas a elevada frequência de casais de namorados originou uma mudança para praia dos namorados.

Aquele seria o local ideal, pensou, pois as rochas que formavam a baía protegeriam a sua sereia da força das marés vivas.

Ali ficou sentado à espera. Ao longe o sol teimava em não recolher os últimos raios que atrapalhavam a chegada da noite. Finalmente o último raio de luz morre no horizonte e a noite pode finalmente abraçar o farol. Levantou-se e freneticamente começa a emitir a sequência de sinais que indicaria à sua Sereia o local do encontro.

Desceu a escadaria da torre do farol, comeu e preparou tudo para a sua partida. Revisou e assegurou-se que os equipamentos do farol, que entrariam em funcionamento automaticamente em caso de emergência, estavam todos operacionais. Não podia arriscar uma falha naquele momento, seria o fim da sua carreira como faroleiro.

Antes de sair ainda subiu a torre do farol até ao varandim do topo, de onde repetiu os sinais, por segurança.

Desceu, vestiu a roupa adequada e partiu em direcção à praia dos namorados. Desceu a escadaria em madeira que dava acesso ao areal da praia. Admirou a noite e o mar que como o previsto estava muito agitado, as marés vivas estavam particularmente altas e violentas.

Sentou-se na areia e esperou pela chegada da sua amada Sereia. Preencheu a sua espera com pensamentos sobre o futuro, um futuro de felicidade com a sua Sereia, naquela costa que ambos adoravam. Encontrou soluções para o problema da carta, todas impossíveis mas tão desejadas.

O tempo passava e não avistava nenhum sinal da sua Sereia. Olhou o relógio. Já era tarde, nunca ela tinha vindo tão tarde. Perguntava-se se lhe tinha acontecido algo. Levantou-se e aproximou-se da água, procurando esticar o olhar em direcção ao mar em busca de um sinal dela.
Nada! Não havia qualquer sinal. Desesperado afastou-se da água e foi sentar-se novamente no areal. Enterrou a cabeça entre os joelhos e ali permaneceu.

Já a noite ameaçava abrir os braços e libertar o farol do longo abraço que tinha iniciado com a partida do sol, quando levantou a cabeça e decidiu voltar para o farol. A sua passagem ficou um trilho formado por pés que se arrastavam ao longo do areal em direcção à escada.

Quando se preparava para abrir a porta do farol, o primeiro raio de sol trespassou o azul do céu dizendo: bom-dia!

Entrou no farol, dirigiu-se ao quarto e caiu inerte sobre a cama, onde adormeceu entre convulsões de choro, sem que nenhuma luz o iluminasse.


Quero... e Não Quero

Quero procurar-te na minha memória e não te encontrar
Quero não me lembrar de ti
Quero varrer-te do meu pensamento
Quero apagar-te da minha vida.

Quero
e não quero

Quero encontrar-te
Quero ver-te
Quero falar-te
Quero ter-te ao pé de mim
Quero tocar-te, abraçar-te, beijar-te
Quero acariciar-te
Quero sentir-te e olhar-te
Quero cheirar-te, provar-te, saborear-te
Quero no fim
Amar-te.

Quero
e não quero

Quero a certeza
Não quero a dúvida
Quero a alma e o coração
Não quero a razão
Quero o amor e a paixão
Quero a emoção

Quero
e não quero

Quero-te a ti
Quero, quero, quero!


23 de julho de 2004

A História do Faroleiro

Só uma luzinha para avisar que a história do Faroleiro já tem mais 7 capítulos escritos e ainda não chegou ao fim.

Espero que a luz da paciência vos ilumine para continuarem a acompanhar esta história de Amor e Amizade.

Se alguém quiser deixar alguma luzinha para a história, por favor utilize o correio do farol.


Um Som

Nos olhos transparentes
Um oceano a perder de vista.

Na pele o fogo
O fogo que queima
Com a paixão do toque.

No cabelo o vento
Que acaricia o rosto
Num beijo de amor.

Nos lábios
Um som
Uma mensagem
Amo-te!


A Disseminação da Luz

Terminou de escrever o bilhete para o padre Mário que encerrou num envelope da Junta. Virou o envelope, traçou com duas linhas fortes o nome da Junta e no lugar do remetente escreveu o seu nome "Francisco Ramos". Acrescentou o destinatário e a indicação P.M.P.

Recostou-se na cadeira, e descansou com o olhar perdido muito além do tecto. No rosto o sorriso da esperança e a sensação da missão cumprida proporcionou-lhe uma paz interior que o transportou para um mundo de sonho, o mundo do seu amigo Faroleiro.

Perdeu a noção do tempo enquanto vogava por aquele mundo de sonho, habitado por sereias, ninfas, cavalos-marinhos, polvos e todas as criaturas que povoam a profundeza dos oceanos. Viu Neptuno e Nereu com as suas cinquenta filhas, com as quais visitou a cidade perdida da Atlântida, construiu castelos de areia e brincou em jardins de corais. Pintou de azul as cristalinas águas dos trópicos e como um oleiro ajudou a deu forma a belas conchas e búzios. Viu Tritão, filho de Anfitrite, soprar a sua concha para acalmar os movimentos do mar, e por fim descansou, numa cama de espuma branca. 

Voltou à superfície quando Júlio do lado da secretaria, bateu à porta interior.

- Sim, entre! - respondeu.

- Desculpe Sr. Presidente, mas o Carlinhos já voltou e se o senhor Presidente tiver o bilhetinho para o Sr. Padre Mário, ele podia ir entregar agora.

- O Carlinhos já afixou os cartazes todos? - disse com admiração - Realmente esse rapaz é uma verdadeira surpresa.

- Sr. Presidente, já passou mais de uma hora desde que ele saiu?

- hã, pois... nem tinha dado conta do tempo passar. Aqui tem o bilhete, Júlio.

Júlio abandonou o gabinete e Francisco tentou recuperar a rota da viagem que tinha abandonado com a entrada de Júlio. Mas nada, na sua mente apenas a recordação daquele passeio inesquecível. Olhou o relógio e viu que já passava bastante da hora da Junta fechar.

Levantou-se e foi directo à secretaria. Carlinhos preparava-se para ir ao encontro do Padre Mário, Mas foi travado pela voz de Francisco.

- Carlos, espere um pouco.

Embora para ele fosse sempre o Carlinhos, em público tratava-o sempre por Carlos, queria que ele sentisse que tinha um tratamento igual a todos os funcionários da junta, pois não queria provocar nele qualquer sentimento de inferioridade.

- Estava a pensar que podíamos ir todos tomar um fino ao Ocaso. Afinal hoje é sexta-feira e apetece-me ver o mar. Depois podemos passar pelo hotel e Jantar na esplanada e de lá ver o pôr-do-sol.

- Mas Sr. Presidente, eu tenho de ir a casa do Sr. Padre Mário?

- Vá Carlos, aproveite, passe por casa e avise a sua mãe que hoje janta comigo no hotel. E você Júlio, anima-se?

- Sr. Presidente, a minha patroa?

- Ande lá homem, que um dia não são dias, quer ver.

Sem mais, Francisco pega no telefone e liga para casa de Júlio.  

- Olá Catarina, é o Francisco. Então os meninos estão bem?

- Folgo em saber isso - respondeu à réplica de Catarina. - Olhe hoje o Júlio vai jantar comigo ao hotel se não se importar.

Catarina responde algo, a que Francisco responde com um:

- Então está combinado.

Virando-se para Júlio,

- Estás a ver, como já está tudo resolvido.

Saíram os três da sede da Junta. Carlinhos dirigiu-se a casa do Padre Mário, enquanto Júlio e Francisco seguiram para o Ocaso.

Enquanto percorriam as ruas estreitas, onde o cheiro dos grelhados de peixe e carne se baralhavam e lutavam ferozmente para ocupar um lugar no olfacto dos transeuntes, Júlio, não conseguindo conter a sua curiosidade pergunta:

- Ó Francisco, diz-me lá para que é aquela reunião. Tem algo a ver com a história do faroleiro?

- É claro que tem, Júlio! Hoje falei com o Padre Mário e ele disse-me algo que pode ser a salvação do Faroleiro.

- Mas tu acreditas mesmo na história da sereia que aquele maluco inventou?

Nesse momento a cara de Francisco crispou-se e olhou, primeiro com ar zangado para Júlio que se encolheu e curvou todo por dentro. Mas depois a face de Francisco desenrugou-se e o seu rosto espelhou uma expressão de compreensão que reflectia igualmente alguma pena daquela alma que era cega.

- Meu caro Júlio, por que não acreditas tu?

- Ora Francisco onde já se viu sereias??? Todos sabem que isso é uma invenção de marinheiros que em momentos de delírio, provocado pela solidão das longas viagens pelo mar, as inventavam, para confortar o seu desespero e tentar apagar a amargura que os assolava tal qual as ondas tentavam fazer ao frágil casco da embarcação.

- Agora diz-me tu Júlio. Já alguma vez viste o ar que respiras?

- Não nunca o vi. Mas que tem isso a ver? - Disse Júlio baralhado.

- Mas acreditas que ele te entra pelo nariz, vai até aos pulmões alimentar os glóbulos vermelhos de oxigénio.

- Sim, toda a gente sabe isso.

- E mais, já alguma vez viste uma planta respirar?

- Claro que não, mas diz logo onde queres chegar que esta conversa já me começa a irritar.

Júlio mostrava-se cada vez mais impaciente, não percebia onde queria Francisco chegar com aquela conversa, mas sentia que estava a perder aquele jogo.

- Calma, tem calma, que já lá chegamos. Mas sabes que elas, de alguma forma, respiram e até libertam oxigénio?

- Claro que sim, aprendi na escola que esse processo se chama fotossíntese.

- Pois meu caro Júlio, como te ensinaram na escola tu acreditas que respiras um ar que nunca viste, e que até as plantas respiram, mas não acreditas em sereias. Não te falaram delas também na escola?

- Falaram, mas sempre me disseram que elas não existiam.

- Pois bem, meu caro, o problema é mesmo esse, tu não acreditas, porque te disseram que elas não existem, mas que prova tens tu?

- Nenhuma... - disse o resignado Júlio.

- Agora pensa e diz-me quem é mais maluco o Faroleiro que viu a sereia e portanto acredita, ou tu, que sem prova nenhuma, afirmas com a segurança do nada que elas não existem. E o maluco é ele...!

Aí, Júlio calou-se e assim foi, até que chegarem ao Ocaso.

Sentaram-se numa mesa, onde momentos depois chegava Carlinhos.

- Desculpe Sr. Presidente, atrasei-me um pouco porque o Padre Mário insistiu em ler o seu bilhete, pois não sabia se tinha de dar alguma resposta. Por fim disse-me que o Sr. Presidente podia contar a sua colaboração e que não faltaria à reunião de segunda-feira.

- Obrigado Carlos.

Francisco, levantando a mão, gritou,

- Manel são três finos, e já agora, arranja um prato de caracóis que hoje fizemos por merecer este momento de luz.


22 de julho de 2004

A Preparação

Francisco saiu da igreja em passo apressado em direcção à sede da Junta de Freguesia. Enquanto percorria as ruas irregularmente empedradas da vila, uma ideia ia tomando forma na sua cabeça. Quem o visse a gesticular, quase a falar sozinho, com o olhar perdido num destino que nunca se atinge, até pensaria que era ele quem perdera o juízo, não o seu amigo Faroleiro. A sua rápida caminhada, alimentada por passos largos, era por vezes interrompida por um aceno de mão, um cumprimento e até mesmo por um beijo.
 
Ao passar junto ao mercado da vila é que foi literalmente barrado no seu intento de chegar à sede da Junta. Quatro mulheres colocaram-se de tal forma à sua frente, que por pouco, este não as derruba. Com o pensamento e a vista muito longe nem deu conta da sua intenção. Parou para lhes falar.
 
Francisco, não era propriamente um político no sentido mais negativo da palavra, na verdade de político tinha muito pouco. A não ser uma simpatia natural e uma disponibilidade total para beijos e conversas, nunca prometia nada que soubesse não poder cumprir e não se furtava a dizer não, quando tal era necessário.
 
A sua eleição para a presidência da Junta tinha sido quase um acidente. Tinha voltado da cidade após terminar o seu curso - que na terra nem ninguém sabia muito bem qual era - para assumir alguns negócios que o seu falecido pai lhe tinha deixado. Filho único, acabou por se embeiçar por uma bela moça que era empregada no pequeno hotel que o seu pai tinha construído num local privilegiado da costa, mesmo junto à marginal e com vista para o pôr-do-sol "mais lindo do mundo", como gostava de lhe chamar. Já da sua lavra, tinha mandado reformar o hotel e colocado o restaurante, ao qual adicionara uma belíssima esplanada, numa posição ímpar para apreciar toda a beleza daquelas vistas. Quem não gostou muito foi o Manel, proprietário do Ocaso, até esse momento detentor exclusivo dos direitos de vistas sobre tão apreciado fenómeno, mas nunca este facto gerou qualquer atrito entre ambos, e prova disso eram as visitas de Francisco ao Ocaso nalgumas tardes para se sentar na esplanada e dali apreciar a beleza daquele momento fugaz.
 
O "Sô Dotor" como alguns lhe chamavam, fora pescado por uma força politica minoritária, bem..., em abono da verdade, foi um "quase irmão" de seu pai quem lhe pediu para ser o cabeça de lista, pois não tinham mais ninguém e ele não teve coragem para lhe dizer não. Já em cima das eleições o candidato mais bem posicionado e presidente da Junta desde tempos imemoriais, foi acometido por doença súbita, estranhamente, no dia seguinte a uma jantarada do partido, precisamente no hotel de Francisco - de seu nome, Pôr-do-sol - o que chegou ainda a gerar algumas suspeições, mas que pouco depois se vieram a mostrar completamente infundadas. E assim chegou o nosso "Dotor" a presidente da Junta.
 
Depois de distribuir oito beijos pelas suas eleitoras "favoritas" - nas suas palavras - começou o rol de queixas. Dª Manuela, queixava-se do empedrado das ruas que lhe estragam a bengala, Dª Albertina dizia que mercado estava muito sujo, era necessário reforçar a limpeza, ai se ela pudesse... mas a idade... Dª Agostinha queixava-se quem ninguém se importava com os mais idosos, ninguém dava ouvidos os seus problemas, que o Sr. Presidente era muito simpático, mas era o único que os ouvia, mas sabiam que sozinho pouco podia fazer, mas se conseguisse um lar lá para a terra, até lhe colocariam o seu nome. Por fim Dª Pilar, uma Alentejana, importada por via da filha que, fascinada pelo mar, se tinha mudado para a vila há uns anos e nutria por Francisco um sentimento maternal, lhe disse:
 
- Vá Francisco, vá! Se aqui fica estas velhas resmungonas não o largam e vejo que algo o preocupa, vá antes que se faça tarde.
 
Despediu-se com cortesia e quando se afastava, Dª Pilar ainda lhe atirou uma frase, cujo significado não foi capaz de compreender completamente, pois parecia que lhe tinha lido o pensamento,
 
- Transmita os meus cumprimentos ao seu atormentado amigo e ele que não se preocupe, a maior das forças ilumina-o!
 
Será que ela se referia à ideia que na sua cabeça tomava forma? - pensou.
 
Tentou evitar as ruas mais movimentadas, para não ser novamente interrompido na sua viagem por mais algum semáforo que acendesse a luz vermelha à sua passagem.
 
Finalmente a Junta aparecia à sua frente. Era um edifício de um único piso. As linhas arquitectónicas faziam lembrar as escolas primárias do Estado Novo, com um mastro ao centro para colocação da bandeira. Janelas nos lados e uma porta ao meio, que propagava a  claridade exterior pelo corredor central. À esquerda duas portas, a da sala da assembleia e mais ao fundo, outra, a das casas de banho, à direita duas portas de acesso à secretaria e ao fundo, mesmo em frente, na extremidade oposta à da entrada, estava a porta do gabinete do presidente, que do seu interior dava acesso directo à secretaria.
 
Entrou apressado direito ao gabinete. Sentou-se, puxou por uma folha e começou a escrever sobre ela. Leu o que tinha escrito, pensou que tinha de falar com o presidente do grupo recreativo da vila e deu uma gargalhada ao lembrar que era ele também o presidente do grupo recreativo. Fez duas ou três correcções e chamou o secretário.
 
- Júlio, Júlio! Faça-me um favor e passe-me este edital para papel timbrado da Junta. Depois peça ao Carlinhos para o afixar nos locais de costume.
 
Carlinhos era um jovem que tinha problemas de aprendizagem. Até Francisco assumir a presidência da junta, vivia a fazer biscates pela vila, muitas vezes cruelmente explorado por pessoas sem escrúpulos. Francisco tinha-o contratado para a junta e ele tinha-se revelado um excelente funcionário, pontual nas entradas, não tanto nas saídas e sempre disponível para ajudar, mesmo naquilo em que manifestamente não podia.
 
Quando Júlio se preparava para sair do gabinete, Francisco travou-o para lhe dizer que era melhor fazer umas cópias a mais.

- O Carlinhos que as afixe por todo o lado, quero o salão do grupo recreativo cheio.

Acrescentou ainda: 
 
- Ele que leve também uma ao Padre Mário, juntamente com o bilhete que lhe vou mandar.
 
O Edital convocava uma reunião com todos os habitantes da vila, pois acreditava que seria a luz daquela união que salvaria o seu amigo Faroleiro.


21 de julho de 2004

Adeus

Desculpem a interrupção na história do nosso faroleiro, mas tinha aqui isto atravessado nas costas de um talão de hipermercado desde esta madrugada.
 
Adeus dos sentidos
 
Na memória
A lembrança
Dos beijos que não te dei
Das carícias que não te fiz
 
Na boca
Um sabor
O doce paladar da tua pele
Que se arrepia
 
No nariz
O teu odor
Num turbilhão
De cor-de-rosa, azul e branco
 
Nas mãos a dor
A dor da pele queimada
Pela ausência
Do toque da tua
 
No ouvido
Um som
Uma música
A do último segundo
 
Nos olhos,
Nos olhos, só uma luz
A do teu sorriso
 
Na Alma
Uma gaveta
Aberta
Que agora fecho
 
Adeus meu Amor
Amar-te-ei Sempre.


A Confissão

Despediram-se e Francisco partiu por um atalho pouco conhecido, que pelas arribas, conduzia à vila. Pelo caminho olhava o mar com um brilhozinho nos olhos, enquanto pensava como era extraordinariamente bela aquela história do faroleiro. Tentou imaginar como seria a sereia, mas o seu imaginário naquele tema específico estava em branco.

Aqueles dois cristais, ou se fossem mesmo diamantes, como verdadeiramente acreditava, eram a coisa mais maravilhosa que os seus olhos alguma vez tinham visto. Pensou que não podia falar daquilo com ninguém, mas não podia deixar partir o seu amigo, agora uma alma irmã por força do segredo que partilhavam. Ao mesmo tempo que não podia revelar ao povo da vila o segredo que guardara com muito cuidado na gaveta mais secreta da sua alma, imaginava como poderia estender uma mão para amparar o seu amigo Faroleiro.

Tinha de pensar num meio de ajudar o Faroleiro. Pensou em conseguir-lhe um emprego na vila, mas depressa afastou essa ideia, ele tinha de continuar no farol, pois seria a melhor forma de continuar em contacto com a sua amada sereia sem que ninguém desconfiasse. Aquele era o lugar ideal, a solidão do farol proporcionava o álibi perfeito para o seu amor.

Chegado à vila foi falar com o padre Mário. O padre Mário, um homem de saber e de experiência feito, decerto saberia dar-lhe um conselho sábio e era isso precisamente que ele necessitava naquele momento.

Chegado à igreja, observou que o padre Mário estava a falar com algumas mulheres, na maioria mulheres de pescadores que andavam embarcados na faina da pesca. Desde que viera para a vila, ainda ele era um jovem, que o padre Mário reunia regularmente com as mulheres dos pescadores, quando eles partiam para a faina.

Bom conhecedor do carácter humano, o padre Mário gostava de ouvir as mulheres falar, sabia que a solidão e a incerteza da vida no mar podia ser muito cruel para aquelas almas, por isso as convocada para aquelas conversas, por vezes nada religiosas, outras vezes sérias e muito frequentemente divertidas. Ele deixava-as falar sobre tudo, sobre o dia-a-dia sozinhas, sobre os filhos, sobre as dificuldades da vida, sobre a dor da partida, a angústia da incerteza, a esperança num futuro melhor e principalmente na alegria do reencontro.

Aquelas reuniões funcionavam como a válvula de uma panela de pressão, aliviavam a pressão que dentro daquelas almas se acumulava pelas tensões a vida as submetia. Numa posição de moderador, tentava sempre condicionar a direcção da conversa no sentido da esperança e da alegria, mas não refutava os conversas melancólicas e as angústias, para as quais tinha sempre uma palavra amiga e muitas vezes um provérbio popular.

Francisco sentou-se num banco de onde acenou ao padre Mário que por gestos lhe perguntou se podia esperar. Francisco acenou afirmativamente. Enquanto permaneceu ali sentado foi observando a igreja.

Não era propriamente o que pode chamar um católico praticante, bem na verdade, já há muito tempo que apenas entrava na igreja para falar com o padre Mário. Agora que se lembrava, nunca o padre Mário lhe tinha referido isso, ou simplesmente questionado o facto de apenas aparecer quando necessitava algum conselho. Realmente, aquele padre Mário nem parecia era um padre do seu tempo.

Recordou a chegada do padre Mário. Recém-ordenado, era ainda um jovem quando pisou a vila pela primeira vez. A sua juventude no início não foi bem digerida por aquele povo, principalmente as pessoas mais idosas. O mesmo não se pode dizer das jovens senhoras, principalmente as solteiras. Era um jovem alto e atraente, um rosto de linhas direitas, um queixo ligeiramente quadrado e um porte atlético. Essa foi, talvez, a faceta mais estranha do padre Mário, ainda hoje passados muito anos continuava a fazer longas caminhadas pela praia e dava extensos passeios de bicicleta, chegando inclusive a formar um clube de ciclo turismo na vila. Por vezes fazia-se acompanhar pelos jovens, nas extensas caminhadas pelo areal da praia. Entre as explicações das marés, do ciclo da água e significado daquela espécie de pedras pretas que davam à costa e que se pisadas se colavam aos pés como grude, lá ia ministrando a catequese aos atentos ouvintes.

Olhando para ele hoje, continuava a ser um homem atraente, não que ele fosse um especialista a apreciar homens, mas os olhos que tinha por baixo da testa serviam para isso mesmo, para ver. Estava mais forte, era certo, mas mantinha o mesmo porte atlético de outros tempos, o cabelo grisalho inspirava confiança e o sorriso rasgado, mas sinceramente puro, com que recebia todos quantos dele se aproximavam, captava a simpatia até dos mais cépticos a estas coisas da religião.

Padre Mário tinha terminado a sua conversa com as mulheres, das quais de despediu com dois beijos a cada uma, esta era mais uma da inovações do padre Mário que tinha escandalizado a vila nos primeiros tempos, mas depois, todos se habituaram, ele era mesmo assim.

Dirigindo-se a ele em passos largos. Tinha espelhado no rosto o sorriso de satisfação de alguém que cumpriu com gosto uma tarefa importante.

- Sr. Presidente, que o traz à casa do Senhor nesta manhã? Não me diga que necessita da ajuda divina?

- Com está, padre Mário? Há realmente alguma verdade nas suas palavras, mas também se enganou?

- Como assim?

- Realmente necessito da ajuda divina, mas quem a requer não é o Presidente da junta, mas sim o Francisco e desde já lhe confidencio quem nem é para mim, mas para uma alma pura e atormentada, a quem querem tolher os sentimentos mais cristalinos.

- Bem homem, então nesse caso é melhor não falarmos aqui no meio da igreja. Venha, vamos até à sacristia onde estaremos mais à vontade - disse o padre Mário.

Já sentados na Sacristia, o padre Mário toma a iniciativa e começa,

- Calculo que venha falar-me dessa triste história da carta e do nosso amigo Faroleiro.

- Nem mais, Padre Mário.

- Pois, já calculava. Quanto me falou em alma pura e atormentada? Não é conheça o Faroleiro, pois como sabe não vem muito por esta casa, mas já tive oportunidade de trocar algumas palavras com ele nos meus passeios pela costa e a sua descrição assenta-lhe como um luva. Então diga lá em que o posso ajudar?

- Pois, esse é mesmo o problema. Sabe, esta manhã estive à conversa com ele no farol e do fundo do coração lhe digo padre, que a história daquele homem é verdadeira, tão verdadeira como estarmos os dois, aqui, sentados neste momento.

- Saiba o meu amigo Francisco, que nunca, nem por um momento duvidei da veracidade da história, talvez por ser um homem de fé, sou levado a acreditar naquilo que os olhos não vêem.

- Curioso, padre Mário, mas na minha conversa com ele, também se falou em ver com os olhos da cara e com os olhos da alma?

- Está a ver o meu amigo, porque lhe disse que acreditei na história desde o início. A mim bastou-me trocar com ele algumas palavras, a quando dos meus passeios para lhe ver a alma, aquele homem é transparente e como tal, é fácil ver que a sua alma é pura, pelo que a sua história não podia deixar de ser verdadeira. O que me admira é o Francisco, vir até mim dizer-me que agora acredita no que apenas se pode ver com os olhos da alma? Conseguiu mais o Faroleiro numa manhã de conversa consigo, que eu em anos de tentativas em lhe mostrar que a luz se esconde um pouco em cada um de nós, mas que é necessário não desistir de a procurar. Acaba o meu amigo, sem o saber de por em causa a minha vocação. Fiquei sensibilizado com a sua mudança, mas ao mesmo tempo, fico com a dúvida se esse faroleiro não seria melhor pastor que eu?.

- Não padre Mário, esteja descansado que ninguém quer o seu lugar, até porque, desempenha a tarefa que lhe foi confiada como ninguém. Na verdade tenho de lhe confessar?

- Agora até já te queres confessar!! - atalhou o padre Mário, perplexo - Isto está lindo, está? só me faltava ouvir isso, depois de tantos anos!

- Descanse padre, que ainda não vai ser desta... - disse Francisco, por entre umas gargalhadas.

O padre Mário não pode deixar de dar também uma gargalhada e dizer em tom de brincadeira,

- Assim já fico mais descansado, estava a pensar que tinha chegado a hora de renunciar a esta minha laboriosa tarefa. Vá, então diga lá.

- O que lhe queria dizer é que não foi só a conversa com o faroleiro, eu vi algo com os olhos da cara, que pela sua beleza e singularidade me fez acreditar na história que ele conta. Como vê o seu feito, não foi assim tão grandioso.

- Todos os feitos são grandiosos, até os mais insignificantes. O importante Francisco, é que ele conseguiu que você, meu amigo, visse para além daquilo que é o mais óbvio e imediato e esse feito acredite que é algo extraordinário, independentemente de qual foi a porta de entrada. A luz desse faroleiro tocou-lhe a alma e isso é o mais notável.

- Vejamos - continuou o padre Mário - já me disse o que eu sabia, agora, o que lhe falta dizer é o que eu não sei, isto é, o que necessita de mim o Francisco ou o Faroleiro.

- Necessito saber como ajudar o Faroleiro, para que não o retirem do seu lugar no Farol.

- Questão difícil essa. Noutros tempos, em que a igreja era bem mais influente, eu poderia tentar junto da nossa hierarquia comunicar com o poder político e...  tentar, que eles vissem a luz... está-me a perceber?

Nesse momento o padre Mário remexeu-se na cadeira como se algo o perturbasse e disse com um ar sério,

-Ora bolas! Que estou eu para aqui a dizer, logo eu que nunca fui homem de meias palavras, o que estava a querer dizer é que poder-se-ia influenciar e mesmo mudar o rumo das coisas, mas hoje em dia isso é mais difícil. Compreende?

- Perfeitamente, padre Mário! E que sugere nesta situação?

- Sabe Francisco a única coisa que se ocorre é um ditado popular, vamos lá ver se o entende: "Da união nasce a força."

Depois de reflectir um pouco nas palavras do padre Mário, nos olhos de Francisco surgem umas centelhas de luz que iluminam um sorriso no rosto do padre Mário. Levantou-se e esticando a mão para se despedir do padre Mário disse:

- Já sei, padre Mário... já sei!

Já de costas, caminhando apressado em direcção à porta, ia deixando uma mensagem ao padre Mário.

- Agora tenho de ir, mas ainda vou necessitar mais uma vez da sua ajuda, em breve terá notícias minhas. Obrigado Padre Mário, mil obrigados!

- Vá em paz Francisco e quando necessitar, já sabe, a luz deste seu amigo está aqui para isso mesmo, para ajudar.


20 de julho de 2004

A Visita

Chegados ao cimo da falésia, foram as tradicionais despedidas, com votos de boa noite. Francisco e seus acompanhantes seguiram em direcção ao Ocaso, enquanto ele seguiu em direcção ao farol, mas sem nunca afastar demasiado o olhar do mar, talvez ela...

Chegado ao farol, passou pela cozinha, onde apanhou uma bebida e subiu ao cimo da torre principal. Não seria fácil dormir naquela noite. Por um lado a carta, para a qual ainda não tinha uma resposta. Mas a determinação da sua sereia em o seguir acariciava-o, como se tal fosse possível, para a cidade, sem mar, sem os reflexos dourados do sol na superfície da água e aquele pôr-do-sol, laranja sobre azul que tanto os encantava.

Também o perigo de serem descobertos, que tão próximo esteve nessa noite o atormentava. O ar frio da noite no seu rosto, ainda o mantinha mais desperto. Decidiu descer, e fazer um esforço, afinal tinha de manter um pensamento fresco e lúcido, tinha muitos problemas para resolver e não poderia dar ideia de estar a perder a sua lucidez.

Enquanto isso, também Francisco estava com dificuldades para dormir. Reviu vezes sem conta aquele encontro com o faroleiro e a sua presença naquele areal continuava a intriga-lo. Não era propriamente a sua presença no areal, mas o seu passeio pelas rochas. Além disso era capaz de jurar que o tinha visto levar a mão à boca e fazer um gesto semelhante a quem sopra um beijo, e logo em direcção ao mar. Na manhã seguinte iria falar com ele, sem falta.

A manhã seguinte acordou com o sol radioso que teimava em penetrar as cortinas de linho, que uma simpática senhora da vila tinha insistido em colocar nas suas janelas. Disse-lhe que assim o farol teria mais aspecto de um lar, um lar feliz.

Levantou-se para a sua rotina matinal. Casa de banho, cozinha e depois a rega do jardim. Quando se preparava para a rega, eis que surge Francisco.

-Olá homem, então a tratar das flores?

Estranhou ver Francisco por ali, embora fossem amigos, nunca o fora visitar ao farol. E logo no início da manhã, havia ali algo...

- Olá Francisco, seja bem-vindo ao farol. Creio que é a primeira vez que vem, apeteceu-lhe esticar as pernas depois do passeio nocturno de ontem?

Vendo que a sua ausência passada, ou a sua actual presença no foral tinha sido notada, não esteve com mais rodeios e foi directo ao assunto.

- Vejo que o meu amigo é como eu, directo, ainda que o suficientemente esperto para não ser áspero. Na verdade como já compreendeu venho para conversar consigo sobre o assunto da carta e o nosso encontro de ontem à noite.

- Vai-me desculpar Francisco, mas não sei se quero falar desses assuntos, que na verdade são o mesmo e um único assunto.

- Então homem, parece-lhe que os problemas se resolvem por si? Tenha confiança, sei que esta solidão que o acompanha no farol não ajuda, mas abrir as gavetas da alma, de vez em quando, faz bem!

E continuou:

- Além disso vai necessitar toda a ajuda que conseguirmos para tentar encontrar uma solução. Sei que não quer partir e nós, falo por mim, mas creio que é a opinião de toda a vila, também não queremos que nos abandone. A sua estadia aqui no farol é uma inspiração para todos nós. Nos momentos de fraqueza penso em si aqui sozinho, mas sempre alerta para ajudar aquelas embarcações que ao longe observam a luz do farol, sem um obrigado ou um adeus. Percebe o que quero dizer?

- Creio que sim, amigo Francisco. Entre, acho que lhe vou contar uma história e quem sabe, talvez até, abrir alguma das gavetas desta alma. O melhor mesmo será conversar aqui fora, creio que a imagem do mar me dá a coragem que à pouco referiu.

Sentaram-se numas cadeiras de madeira que na traseira do farol olhavam o mar, juntamente com uma mesa que, apesar das camadas de verniz, mostrava claros sinais da agressividade daquele ambiente.

Sentaram-se e ele disse:

- Que quer saber o amigo Francisco, ou será o Sr. Presidente?

- Aqui estou como amigo, o presidente, esse podemos chama-lo apenas se o necessitarmos. - retorquiu Francisco - Para lhe ser verdadeiramente franco a história da sua sereia também me espantou e cheguei mesmo a pensar que a solidão o tivesse afectado, mas a sua calma de ontem à noite, mesmo com a provocação daquele desbocado do João Areias, mostrou-me que não. Além disso era capaz de jurar que o vi soprar um beijo em direcção mar? Claro que não contei nada disto aos outros!

- Viu e viu muito bem caro Francisco. Ontem eu estava naquela rocha com ela, a minha sereia de cabelos ondulados como o mar e olhos transparentes, meigos e doces, como o meu amigo não consegue imaginar. Basta um olhar dela para nos enfeitiçar.

- Sabe que essa história é toda ela demasiado incrível para que alguém acredite? Tem consciência disso?

- Claro que tenho! - disse o Faroleiro - Pensa o meu amigo que sou ingénuo? Porque pensa que não ando a espalhar por aí que me encontro com uma sereia, que acredito, me ama? Foi um azar, aquela noite em que me esqueci de acender o farol e ela veio à minha procura. Digo azar porque no delírio do recobro da consciência falei demais e logo junto de pessoas... bem mas o que está feito, feito está.

- Mas...?!? E o futuro???

- Uma incógnita caro amigo! Dúvidas e mais dúvidas e no meio de tanta dúvida, a esperança e uma certeza, não quero perder de vista a minha sereia.

- Isso é muito bonito, um pouco lírico, contudo! - disse Francisco.

Aqui o faroleiro respondeu-lhe com duas questões.

- E o meu amigo tempera a comida com quê?

- Como espera que eu tempere a minha vida?

- Pois olhe, eu escolhi temperar a minha vida com o doce amor da minha sereia. Olhe, agora, vou-lhe abrir uma gaveta da minha alma e mostrar-lhe algo que nunca ninguém viu.

Colocou a mão no bolso de onde retirou uma bolsa de veludo preto que colocou sobre a mesa. Delicadamente abriu a bolsa e à luz do sol brilharam os dois cristais com as lágrimas que derramara do cimo do farol encerradas no seu interior.

- Posso tocar-lhes? - Perguntou Francisco.

- Claro que pode amigo!

Francisco pegou num dos cristais que observou com atenção. Colocou-o contra o sol e viu o líquido encerrado lá dentro. Tinha uns reflexos incríveis. A lapidação era perfeita, e aquele liquido no seu interior... Não era possível!

Francisco, não era propriamente um especialista em pedras, mas o seu avô, fora ourives e tinha-lhe ensinado muito da arte, quando em pequeno brincava na ourivesaria, pois no Inverno o movimento não era muito e ele tinha uma grande paixão pelo neto.

- Que me diz desses cristais? - Perguntou o Faroleiro

- Digo-lhe que não são cristais vulgares, pela talha e pelo brilho era capaz de jurar sobre a tumba do meu avô que isto são...

Ficou calado por uns instantes e depois continuou,

- Mas é impossível encerrar um líquido deste modo no interior de...

- Sabe que se o que estou a pensar for verdade, estes cristais, como você lhe chama, valem uma fortuna?

- Sei sim, amigo Francisco, e ainda lhe digo mais, esses cristais não têm valor!

Francisco olhou de frente para ele com um ar meio aparvalhado.

No meio de uma gargalhada e acompanhada por um grande sorriso a resposta chegou.

- Vejo que entendeu tudo ao contrário, esses cristais independentemente de serem de um cristal reles ou diamantes como julgo que é o seu pensamento, não têm valor, porque não os venderia por dinheiro algum, foi a sereia quem me os deu, e encerram duas lágrimas que por ela verti num momento de desespero.

Francisco sorriu e posou o cristal no saco que fechou com cuidado. Pegou-lhe e estendeu a mão ao Faroleiro que os guardou no bolso.

- Se não tivesse visto nunca teria acreditado, agora lhe digo com toda a sinceridade, tinha esperança que a sua história fosse verdadeira, pois não queria despedir-me de si e agora que sei é verdadeira, a minha vontade de o manter aqui, junto da sua sereia é mil vezes mais forte.

Nesse momento estendeu-lhe a mão num gesto de amizade, ao qual o Faroleiro retribuiu com um forte aperto, enquanto lhe dizia:

- Caro amigo Francisco, o meu amigo apesar de ser uma daquelas pessoas que vê com os olhos da cara tem uma alma corajosa e limpa, mas com a mesma franqueza com que me falou, lhe digo, que alguns de nós vêem com os olhos da alma e não devemos ignorar nem duvidar das suas verdades. Agora lhe peço que guarde este segredo numa das gavetas da sua alma, pois muitas alma não estão preparadas para compreender o que lhes chega pelo olhos da cara, quanto mais pelos da alma.

Francisco sorriu e compreendeu aquela mensagem de luz que o Faroleiro lhe tinha querido enviar.


19 de julho de 2004

A Revelação

Contudo, a luz da esperança, em breve esmoreceu. Foi no dramático momento em que tomou consciência que a noite se abatera sobre aquela parte do globo. Era chegada a hora de enviar o sinal à sua sereia. Tinha de revelar o conteúdo daquela carta, embora soubesse que iria ser muito doloroso para ambos.
 
O sinal serviria para determinar o local de encontro. Nunca repetiam o local dos seus encontros. Era demasiado arriscado, além disso, nem queria pensar no que poderia acontecer se descobrissem que a sua sereia era real. Seria uma correria de televisões, jornais, científicos, todos mais preocupados com aqueles instantes efémeros de glória, a vitória de pousar ao lado de uma sereia, do que, com a magia de partilharmos os oceanos com criaturas tão belas e raras.
 
Escolheu cuidadosamente o local do encontro dessa noite. Lembrou o ciclo da maré e após vasculhar a sua memória pela sequência de sinais, dirigiu-se ao cimo do farol de onde emitiu a série combinada. Nunca tinha questionado como saberia ela que ele estava a transmitir, ou a que horas transmitiria o sinal, mas a verdade é que nunca tinha faltado a nenhum encontro.
 
Desceu e foi até à cozinha do farol. A cozinha, num anexo à torre principal, à qual de acedia por um porta interior, continha o essencial. Poder-se-ia até dizer que estava muito composta, visto o farol ser habitado por um homem solitário. A limpeza poderia fazer inveja a muitas cozinhas, e a arrumação, apesar do parco mobiliário fornecido pelos serviços responsáveis, estava imaculada. A um canto uma mesa, coberta por uma toalha com riscas vermelhas e brancas. Para completar, duas cadeiras contemplavam a luz da noite que timidamente entrava pela janela colocada em frente à mesa. Gostava de comer a olhar para aquele mar que lhe saciava a alma.
 
Do frigorífico, retirou alguns ingredientes com os quais preparou o jantar. Não tinha fome, mas sabia que deveria comer. Sentou-se à mesa, de frente para a janela, enquanto na sua cabeça, escrevia e reescrevia a conversa com a sua sereia.
 
Vestiu uma camisola quente, protegeu-se da humidade com um impermeável e partiu, sumindo-se na escuridão da noite. Seguiu por um trilho estreito que conduzia uma pequena enseada. Até ao momento tudo como o previsto, a maré estava no ponto exacto, tal como tinha antecipado. Desceu ao areal. Parou por uns instantes para se assegurar que ninguém o tinha seguido, depois seguiu até um dos cantos daquele pequeno areal, encravado entre as arribas da costa. Naquela ponta um conjunto rochas parecia formar um caminho que o conduziu mar dentro, até uma pequena ilha que assomava vitoriosa acima do nível da água. 
 
Sentou-se e esperou. Momentos depois, ela emerge das águas, a sua sereia. Estendeu-lhe as mãos e ajudou-a a subir para a rocha. Ela mal olhou os seus olhos percebeu imediatamente que algo não estava bem e disse-lhe:
 
- Tenho tanto para te contar, que mal posso esperar, mas vejo que algo te incomoda?
 
Ele levando a mão ao bolso retirou a carta e respondeu:
 
- Pois, na verdade tenho. O Pedro entregou-me hoje esta carta e receio que não sejam boas notícias, na verdade são terríveis. Vou ser transferido.

Na sua face, que até aí espelhava algum desassossego e medo, nasceu um sorriso e com uma leve gargalhada respondeu:
 
- É só isso. Pensava que fosse pior. Meu querido faroleiro, onde há um farol há mar e onde há mar estou eu, afinal o mar é meu!
 
Ele não respondeu e na sua face crispada ela leu aquilo que ele ainda não tinha dito . Ela não compreendendo avançou:
 
- Há mais? Diz-me por favor!
 
- Receio bem que sim - responde ele - o trabalho que me foi reservado é na cidade, numa daquelas onde não há mar, atrás de um secretária virada para alguma parede sem fim.
 
Nesse momento, ela não consegue evitar expulsar de dentro de si um grito agudo de dor, com tal intensidade, que até o silêncio da noite se calou para o ouvir. Deitou os braços ao pescoço do faroleiro, aninhou a sua cabeça no ombro dele e chorou lágrimas salgadas de mar. Ele tentava acalma-la repetindo-lhe a frase que Pedro lhe tinha dito e que ele já se repetira a si próprio muitas vezes "- tudo se há-de resolver!"
Ela inconformada, afastou-se um pouco dele e atirou a palavra que desde sempre foi o motor da humanidade:
 
- Porquê?
 
Ele, tentando manter a calma, contou-lhe que tinham chegado notícias de que ele andava a ver sereias e os senhores do ministério tinham medo que ele não estivesse no seu juízo mais perfeito. Isso, a ser verdade, poderia constituir um perigo para todos aqueles que dependem da luz do farol para viajar em segurança.
 
Num arrebato ela declarou,
 
- O meu desejo era mostrar-me a todo esse povo, assim saberiam que é verdade, que tu faroleiro és um privilegiado e que isso acontece porque os teus sentimentos são puros.
 
- Não podes! - disse ele, tão rápido quanto lhe foi possível. - Isso seria o teu fim, o teu e de todas aquelas belas criaturas que contigo habitam este mar de sonho.
 
Nesse momento ouvem-se ao longe vozes e aparecem no cimo da falésia raios de luz que se perdem no horizonte. Ela beija carinhosamente o faroleiro e desaparece nas águas. Ao longe alguém grita:
 
- Está ali alguém! Vejam no cimo da rocha.
 
Era Francisco, o presidente da junta de freguesia que acompanhado por alguns locais tinham decidido ir investigar. Conversavam no Ocaso, quando ouviram o grito, que por lhes parecer tão profundo, não resistiram a ir verificar.
 
Desceram com rapidez o trilho que conduzia ao areal, enquanto ele fazia o caminho de volta saltitando pelas rochas a coberto da escuridão, de tal modo que, quem desconhecesse a existência das rochas afirmaria sem sombra de dúvida que caminhava sobre a água.
 
Já no areal as questões triviais.
 
- Que aconteceu? Viu alguém? Onde estava? Quem era? 
  
E por fim a derradeira:
 
- Que motivo levaria alguém a dar um grito assim?
 
O porquê, sempre o porquê, pensou ele...
 
Francisco mais arguto, perguntou simplesmente o que fazia ele ali.
 
- Ouvi, como o meu amigo, o grito e uma vez que andava por perto vim investigar. Subi às rochas para ver se via algo no mar, mas infelizmente....
 
João, um "bom vivant" local que se governava de um biscates que fazia no verão e às custas de sua mãe durante o Inverno, dirigiu-lhe uma provocação no seu melhor estilo desbocado e irónico.
 
- Quem sabe se não andava à pesca de alguma sereia...
 
Os olhares dos restantes, conhecedores do conteúdo da carta, não podiam ter sido mais explícitos. Apenas o faroleiro, com um ar mais descontraído sorriu e disse: 
  
- Quem sabe, quem sabe... Uma coisa é certa, João, você nunca o saberá.
 
- Bem uma vez que não indícios de qualquer acidente proponho que voltemos rapidamente, pois a maré vai subir e dentro de momentos este areal vai deixar de existir - disse Francisco, que apesar dos anos que tinha passado fora da vila para estudar, continuava a conhecer o mar, as marés e costa como poucos.
 
Assim seguiram pela falésia a cima, em fila como se de uma excursão de meninos de tratasse. No entanto, de entre aqueles homens, dois tinham pensamentos muito próprios. Francisco, pensava que na manhã seguinte tinha de ir falar com o faroleiro, pois algo o incomodava, embora não conseguisse precisar o quê.
 
Dentro da cabeça do faroleiro ecoava ainda o grito de dor da sua sereia e um pensamento atravessava-lhe o coração vezes sem conta:
 
Como a vida os tinha lixado.


18 de julho de 2004

A Luz da Esperança

De repente, outro pensamento atravessa-lhe o pensamento como um carro veloz. Tinha de revelar aquela triste notícia à sua sereia. Mas como iria ela reagir a tão inesperado acontecimento? - pensou.
 
Teria de aguardar a noite e então enviar-lhe aquele sinal especial que ambos tinham combinado para que ela viesse ao seu encontro, protegida pelo manto escudo da noite, tal édredon que o protegia, a ele, nas noites frias. Assim seguros a coberto daquele édredon poderiam por fim revelar-lhe a notícia.

Entretanto, a notícia da partida do faroleiro espalhava-se na pequena vila, ao ritmo da distribuição do correio dessa manhã. O espanto era generalizado e as opiniões diversas.

- Não, não pode ser! Um homem tão sério e tão bom. Nunca houve qualquer problema desde que cá está na terra.

- Sempre me pareceu que este faroleiro escondia algo, sempre sozinho no farol, cheguei a pensar outras coisas...

- Nunca me pareceu homem para essas insanidades. Sempre que me cruzo com ele cumprimenta-me com muito respeito.

- Era um bom companheiro para as cartas, vou sentir a falta dele.

- Eu sempre disse que aquele trabalho no farol era capaz de dar com qualquer um em doido, mas que é uma pena é , era tão atraente...

Este último comentário tinha sido proferido por Maria. Apesar de ser bastante atractiva, Maria era solteira, embora já não tivesses idade para isso. O seu relógio biológico à muito tinha dado as badaladas mais audíveis, mas caprichos da vida tinham ditado a sua sorte.
 
Quando o faroleiro chegou, o seu coração começou a bater com outro ritmo e sonoridade, mas infelizmente para ela, ele nunca lhe entregou o seu olhar com o sentido que ela desejava. De vez em quando, ela fazia longos passeios que a levavam junto do farol, na expectativa de poder falar com ele e talvez, quem sabe....

Nesse dia ninguém viu o faroleiro pela vila. Oprimido sobre tão grande peso, estava sentado no varandim, no ponto mais alto do farol a olhar o mar, aquele mar onde sabia estar a sua felicidade, mas que agora teria de abandonar.

Pensamentos obscuros nublavam-se a razão. A demissão poderia ser uma solução. Ainda pensou entregar-se ao mar. Talvez este o aceita-se e assim viveria para sempre com a sua sereia. Pensou ainda em escrever uma carta aos senhores do ministério, talvez até contar-lhes a história de um Principezinho, ou quem sabe, esfregar-lhes a "fuça" naquele extracto de texto de Sophia, onde o Rapaz de Bronze responde a Florinda.

Mas de que adiantaria, a decisão estava tomada, esta gente é demasiado senhora de si para dar o braço a torcer e admitir que se enganaram. Para eles, qualquer derrota é uma vitória, compreendem sempre os sinais e as mensagens que lhes querem enviar e prometem no futuro fazer melhor. É sempre assim. Há quem lhe chame orgulho, ele preferia chamar-lhe estupidez.
 
A sua preocupação agora era como dar aquela notícia à sua sereia. Estava a imaginar os seus olhos transparentes carregados de água que tentaria a todo custo deter para não tornar intensificar o sentimentos de um momento, já por si doloroso.

O pôr-do-sol aproximava-se, com ele os derradeiros minutos de reflexão que ainda lhe restavam antes de enviar o sinal. Por momentos a beleza daquele instante fê-lo abstrair-se dos pensamentos negativos que lhe dominavam o pensamento e um vulto de mulher tomou vida nos seus olhos e com um bonito sorriso, meigo e doce, disse-lhe:

- Nunca percas a esperança faroleiro, que o dia tem a noite e a noite tem o dia e nós ainda teremos muitos pela frente.

Aquelas palavras, cujo alcance total não conseguia abarcar, ecoaram longamente no seu ouvido. Uma sensação de paz e esperança invadia-o lentamente e sem perceber o porquê, a esperança tomava conta do espaço que pouco tempo antes era ocupado pela dor e raiva.
 
Tinha sido atingido pela Luz da Esperança.



17 de julho de 2004

A Carta

Era uma manhã como tantas outras. Levantara-se e tratara do seu aspecto. Uma breve passagem pela cozinha para alimentar o corpo e "energizar" a alma. Depois, a rotina matinal de regar algumas flores que embelezavam o minúsculo jardim que dava as boas vindas aos visitantes do farol.
 
Ao longe viu vir o Pedro. Reconheceu-o pela mota, pois o seu aspecto físico era do mais comum, mas aquela passageira brilhante que o acompanhava nas viagens diárias, não enganava ninguém. Preparava-se para distribuir as notícias pela vila, como fazia todos os dias.
 
Eram amigos, tanto quanto se pode ser a partir de uns jogos de cartas nas longas noites de Inverno no "Ocaso".
 
Preparou-se para lhe acenar, como fazia todos os dias de Segunda a Sexta, quando passava em frente ao farol. Mas naquela manhã, havia algo diferente. Pedro dirigiu a sua mota pelo estrito caminho poeirento que conduz à paliçada que envolve o farol. Estacionou a mota, desceu  e depois de um cumprimento disse:
 
- Hoje tens correio. Parece que é oficial pelo envelope...
 
- Como estás Pedro? Isso deve ser para marcar mais uma daquelas "visitas surpresa" que politico tanto gosta... - retorquiu.
 
Pegou no envelope que Pedro lhe estendia. Era um daqueles envelopes antigos, sem sistema de abertura fácil, o que lhe deu alguma luta. Mas após inserir uma chave pela lateral, toda a resistência se desfez. Lá dentro no cimo da folha o assunto a negrito: "Transferência".
 
- Olha desta vez enganei-me! - disse.
 
Começou a ler o texto, curto, como se impõe quando se dão notícias desagradáveis, para não confundir o leitor. Ia ser transferido para outro serviço, um serviço de secretária na cidade, sem mar...
 
O motivo é que tinham chegado notícias de que ele ultimamente falava com sereias e os responsáveis não podiam arriscar que a sua possível "insanidade mental" colocasse em risco as embarcações que dependem da luz do farol para a sua segurança.
 
Dando dois passos à retaguarda, recuou até se sentar na soleira da entrada do farol.
 
- Más notícias homem? - perguntou Pedro.

- As piores. - disse com um voz dorida.
 
Nas mãos, trémulas, a carta quase voava, levada pela brisa do mar.
 
- Vão transferir-me de serviço. Parece que alguém informou o ministério das visitas da minha sereia... - continuou ele - Mas como podem transferir-me? O que vai ser da minha sereia?
 
- Deixa lá que tudo se há-de resolver! - Disse Pedro, tentando confortar o inconfortável faroleiro.
 
- Não amigo Pedro. Tu não conheces estes homens do ministério, são incapazes de compreender o que não vêem. Não conhecem mais realidade que aquela que lhes entra pelos memorandos e relatórios e algumas notícias no noticiário das oito. A vida cá fora não lhes diz nada, são realidades tão irreais como a sereia que canta para mim, o é para vós.
 
- Tem calma e esperança no futuro, verás que depois de tudo explicado... Agora tenho de ir que se faz tarde e sabes como é este povo, quando não chego a horas desesperam.
 
Atingiu-o com um conforto no ombro e seguiu por entre as flores em direcção à moto que partiu deixando um rasto de pó, em tudo igual, ao da implosão que dentro do peito do faroleiro tinha ocorrido momentos antes.
 
Na sua cabeça um pensamento...  
  
Era o fim!


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