17 de julho de 2004

A Carta

Era uma manhã como tantas outras. Levantara-se e tratara do seu aspecto. Uma breve passagem pela cozinha para alimentar o corpo e "energizar" a alma. Depois, a rotina matinal de regar algumas flores que embelezavam o minúsculo jardim que dava as boas vindas aos visitantes do farol.
 
Ao longe viu vir o Pedro. Reconheceu-o pela mota, pois o seu aspecto físico era do mais comum, mas aquela passageira brilhante que o acompanhava nas viagens diárias, não enganava ninguém. Preparava-se para distribuir as notícias pela vila, como fazia todos os dias.
 
Eram amigos, tanto quanto se pode ser a partir de uns jogos de cartas nas longas noites de Inverno no "Ocaso".
 
Preparou-se para lhe acenar, como fazia todos os dias de Segunda a Sexta, quando passava em frente ao farol. Mas naquela manhã, havia algo diferente. Pedro dirigiu a sua mota pelo estrito caminho poeirento que conduz à paliçada que envolve o farol. Estacionou a mota, desceu  e depois de um cumprimento disse:
 
- Hoje tens correio. Parece que é oficial pelo envelope...
 
- Como estás Pedro? Isso deve ser para marcar mais uma daquelas "visitas surpresa" que politico tanto gosta... - retorquiu.
 
Pegou no envelope que Pedro lhe estendia. Era um daqueles envelopes antigos, sem sistema de abertura fácil, o que lhe deu alguma luta. Mas após inserir uma chave pela lateral, toda a resistência se desfez. Lá dentro no cimo da folha o assunto a negrito: "Transferência".
 
- Olha desta vez enganei-me! - disse.
 
Começou a ler o texto, curto, como se impõe quando se dão notícias desagradáveis, para não confundir o leitor. Ia ser transferido para outro serviço, um serviço de secretária na cidade, sem mar...
 
O motivo é que tinham chegado notícias de que ele ultimamente falava com sereias e os responsáveis não podiam arriscar que a sua possível "insanidade mental" colocasse em risco as embarcações que dependem da luz do farol para a sua segurança.
 
Dando dois passos à retaguarda, recuou até se sentar na soleira da entrada do farol.
 
- Más notícias homem? - perguntou Pedro.

- As piores. - disse com um voz dorida.
 
Nas mãos, trémulas, a carta quase voava, levada pela brisa do mar.
 
- Vão transferir-me de serviço. Parece que alguém informou o ministério das visitas da minha sereia... - continuou ele - Mas como podem transferir-me? O que vai ser da minha sereia?
 
- Deixa lá que tudo se há-de resolver! - Disse Pedro, tentando confortar o inconfortável faroleiro.
 
- Não amigo Pedro. Tu não conheces estes homens do ministério, são incapazes de compreender o que não vêem. Não conhecem mais realidade que aquela que lhes entra pelos memorandos e relatórios e algumas notícias no noticiário das oito. A vida cá fora não lhes diz nada, são realidades tão irreais como a sereia que canta para mim, o é para vós.
 
- Tem calma e esperança no futuro, verás que depois de tudo explicado... Agora tenho de ir que se faz tarde e sabes como é este povo, quando não chego a horas desesperam.
 
Atingiu-o com um conforto no ombro e seguiu por entre as flores em direcção à moto que partiu deixando um rasto de pó, em tudo igual, ao da implosão que dentro do peito do faroleiro tinha ocorrido momentos antes.
 
Na sua cabeça um pensamento...  
  
Era o fim!


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