13 de julho de 2004

Falta de Inspiração

Sentado à secretária, em frente ao ecrã do computador onde o processador de texto suplicava por letrinhas pretas, tentava desesperadamente alimentar a fome daquela folha de papel virtual. Sempre gostara de trabalhar à noite, bem trabalhar e não só, passear, conduzir, falar e principalmente amar. Na verdade tudo era diferente à noite. A noite tinha uma capacidade especial de transmitir uma serenidade que pintava tudo com uma palete de cores completamente diferente. Tinha a sensação que tudo acontecia mais devagar, com menos cor, mas com mais intensidade.

Nessa noite, algo estava diferente, tentara vezes sem conta escrever algo e tantas vezes apagou o que escrevia, que tinha a sensação que a qualquer momento o computador lhe diria que se tinha acabado o corrector, como se isso fosse possível...

Olhou para o relógio, eram quase quatro horas. Pela janela entreaberta entrou uma brisa fria com o inconfundível aroma a mar. Lembrou-se que estava na praia. Apeteceu-lhe sair. Dirigiu-se à porta da varanda, que abriu, para sentir o ar da noite. Estava uma noite fria e muito húmida, o que, aliás era normal naquela zona da costa. No céu, a lua, quase nova, disseminava uma luz graciosa que toda a rua parecia absorver com sofreguidão.

Voltou a entrar, procurou no armário a grossa camisola de lã azul, calçou uns ténis brancos de marca. Junto à porta de entrada deitou a mão ao corta-vento e saiu. Atravessou a estrada que o separava do passeio da marginal e do paredão que continha os ímpetos do mar nos Invernos mais severos.

Inspirou fundo, alimentando todos os glóbulos vermelhos com aquele oxigénio fresco da noite. Foi caminhando ao longo da marginal lentamente, como alguém que não tem expectativas de chegar a algum local específico, caminhava apenas pelo simples prazer de caminhar.

Enquanto caminhava observava as poucas pessoas que com ele se cruzavam. Um casal visivelmente apaixonado passeava abraçado, um grupo de jovens que aparentemente vinha de alguma discoteca, ria e corria em brincadeiras bem mais típicas de crianças e finalmente um outro grupo de jovens sentado num daqueles bancos estrategicamente construídos no paredão, tocava viola e cantava alternadamente versos, algo que se assemelhava a uma desgarrada. Parou um pouco a ouvir, mas depois decidiu seguir, não queria que se sentissem intimidados com a sua presença.

Sem objectivo encostou-se ao paredão, depois, subiu e sentou-se com as pernas penduradas sobre o areal. Olhava o mar e a luz do farol que ao longe de forma compassada espalhava mensagens intermitentes que muitos viam, mas poucos compreendiam.

Olhou para o lado e reparou numa silhueta feminina que um pouco mais à frente, também estava sentada no paredão. Com os joelhos encolhidos, encostados ao peito e presos num abraço mantinha a cabeça apoiada no seu ombro direito. Certamente não era aquele o ombro que lhe necessitava e ansiava, mas era o único disponível. Tinha uns cabelos ondulados, não muito compridos.

Ficou a pensar que faria ela ali. Voltou a olhar para o relógio e comprovou que era tarde, bastante tarde. Estava a ficar intrigado. Reflectiu sobre a possibilidade de se aproximar e falar com ela, mas depressa deu dois passos para trás nas suas intenções. Que pensaria ela?

Ali se manteve afastado, contemplando-a. Vestia uns jeans azuis, e uma camisola de lã igualmente grossa, mas de gola alta, bastante grande, de tal modo que lhe permitia abrigar mãos no interior das mangas. Desdobrou a gola de modo a resguardar do frio o pescoço e parte do rosto. Estava sem dúvida com frio.

A sua intuição, aquela que raramente lhe falhava martelava-lhe incessantemente o pensamento para ir falar com ela. Pensou até que podia oferecer-lhe o seu corta-vento. Subitamente, lembrou como no passado o seu sexto, ou sétimo sentido, fora bom conselheiro. Saltou do paredão como um boneco de mola e dirigiu-se a ela.

- Desculpe, posso sentar-me aqui? Parece que está só e já é muito tarde, talvez lhe possa fazer companhia, sempre estará mais segura?

- Ainda não senti nenhuma ameaça ? disse ela ? a não ser a sua intenção de se sentar ao pé de mim. De qualquer forma este muro é público, pode sentar-se onde quiser, desde que não seja em cima de mim.

Sentiu alguma dor e agressividade na sua voz, mas a sua intuição falou mais alto e sentou-se a seu lado. Reservou alguma distância, pois tinha aprendido que todos temos uma zona chamada "íntima", assim como uma zona económica exclusiva, à qual apenas se deve aceder depois de convidados ou autorizados.

Ali permaneceram em silêncio, até que ela, olhando para ele lhe perguntou qual motivo daquela aproximação. Ele reparou que ela tinha uns bonitos olhos azuis transparentes, nublados por alguma dor a que a vida os tinha submetido, mas ao mesmo tempo, olhando bem o seu interior via-se uma ténue luz de esperança que inconformada se recusada a morrer sozinha.

Ele encantado pelo seu olhar, disse-lhe um daqueles piropos saloios, que imediatamente lhe arrancou um sorriso rasgado, seguido de uma gargalhada. Tinham quebrado o gelo que aquela noite fria tinha querido conservar.

A conversa, cada vez mais animada e íntima, continuou até que o sol, do princípio de Outono surgiu nas suas costas e deu nova vida às sombras que agora se espreguiçavam nas douradas areias da praia.

Nesse momento, ele olhou para ela, e perguntou-lhe:

- Sei que não é normal, mas aceitas tomar o pequeno-almoço comigo? Moro aqui perto...

Ela, surpresa por aquele convite, pensou que devia rejeitar o convite delicadamente, e disse-lhe:

- Vais-me desculpar, mas pensava que podíamos toma-lo em minha casa se estiveres de acordo.

Ele acenou com cabeça, ajudou-a a descer do muro e partiram sorridentes. Aquele era verdadeiramente um novo dia.


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