21 de julho de 2004

A Confissão

Despediram-se e Francisco partiu por um atalho pouco conhecido, que pelas arribas, conduzia à vila. Pelo caminho olhava o mar com um brilhozinho nos olhos, enquanto pensava como era extraordinariamente bela aquela história do faroleiro. Tentou imaginar como seria a sereia, mas o seu imaginário naquele tema específico estava em branco.

Aqueles dois cristais, ou se fossem mesmo diamantes, como verdadeiramente acreditava, eram a coisa mais maravilhosa que os seus olhos alguma vez tinham visto. Pensou que não podia falar daquilo com ninguém, mas não podia deixar partir o seu amigo, agora uma alma irmã por força do segredo que partilhavam. Ao mesmo tempo que não podia revelar ao povo da vila o segredo que guardara com muito cuidado na gaveta mais secreta da sua alma, imaginava como poderia estender uma mão para amparar o seu amigo Faroleiro.

Tinha de pensar num meio de ajudar o Faroleiro. Pensou em conseguir-lhe um emprego na vila, mas depressa afastou essa ideia, ele tinha de continuar no farol, pois seria a melhor forma de continuar em contacto com a sua amada sereia sem que ninguém desconfiasse. Aquele era o lugar ideal, a solidão do farol proporcionava o álibi perfeito para o seu amor.

Chegado à vila foi falar com o padre Mário. O padre Mário, um homem de saber e de experiência feito, decerto saberia dar-lhe um conselho sábio e era isso precisamente que ele necessitava naquele momento.

Chegado à igreja, observou que o padre Mário estava a falar com algumas mulheres, na maioria mulheres de pescadores que andavam embarcados na faina da pesca. Desde que viera para a vila, ainda ele era um jovem, que o padre Mário reunia regularmente com as mulheres dos pescadores, quando eles partiam para a faina.

Bom conhecedor do carácter humano, o padre Mário gostava de ouvir as mulheres falar, sabia que a solidão e a incerteza da vida no mar podia ser muito cruel para aquelas almas, por isso as convocada para aquelas conversas, por vezes nada religiosas, outras vezes sérias e muito frequentemente divertidas. Ele deixava-as falar sobre tudo, sobre o dia-a-dia sozinhas, sobre os filhos, sobre as dificuldades da vida, sobre a dor da partida, a angústia da incerteza, a esperança num futuro melhor e principalmente na alegria do reencontro.

Aquelas reuniões funcionavam como a válvula de uma panela de pressão, aliviavam a pressão que dentro daquelas almas se acumulava pelas tensões a vida as submetia. Numa posição de moderador, tentava sempre condicionar a direcção da conversa no sentido da esperança e da alegria, mas não refutava os conversas melancólicas e as angústias, para as quais tinha sempre uma palavra amiga e muitas vezes um provérbio popular.

Francisco sentou-se num banco de onde acenou ao padre Mário que por gestos lhe perguntou se podia esperar. Francisco acenou afirmativamente. Enquanto permaneceu ali sentado foi observando a igreja.

Não era propriamente o que pode chamar um católico praticante, bem na verdade, já há muito tempo que apenas entrava na igreja para falar com o padre Mário. Agora que se lembrava, nunca o padre Mário lhe tinha referido isso, ou simplesmente questionado o facto de apenas aparecer quando necessitava algum conselho. Realmente, aquele padre Mário nem parecia era um padre do seu tempo.

Recordou a chegada do padre Mário. Recém-ordenado, era ainda um jovem quando pisou a vila pela primeira vez. A sua juventude no início não foi bem digerida por aquele povo, principalmente as pessoas mais idosas. O mesmo não se pode dizer das jovens senhoras, principalmente as solteiras. Era um jovem alto e atraente, um rosto de linhas direitas, um queixo ligeiramente quadrado e um porte atlético. Essa foi, talvez, a faceta mais estranha do padre Mário, ainda hoje passados muito anos continuava a fazer longas caminhadas pela praia e dava extensos passeios de bicicleta, chegando inclusive a formar um clube de ciclo turismo na vila. Por vezes fazia-se acompanhar pelos jovens, nas extensas caminhadas pelo areal da praia. Entre as explicações das marés, do ciclo da água e significado daquela espécie de pedras pretas que davam à costa e que se pisadas se colavam aos pés como grude, lá ia ministrando a catequese aos atentos ouvintes.

Olhando para ele hoje, continuava a ser um homem atraente, não que ele fosse um especialista a apreciar homens, mas os olhos que tinha por baixo da testa serviam para isso mesmo, para ver. Estava mais forte, era certo, mas mantinha o mesmo porte atlético de outros tempos, o cabelo grisalho inspirava confiança e o sorriso rasgado, mas sinceramente puro, com que recebia todos quantos dele se aproximavam, captava a simpatia até dos mais cépticos a estas coisas da religião.

Padre Mário tinha terminado a sua conversa com as mulheres, das quais de despediu com dois beijos a cada uma, esta era mais uma da inovações do padre Mário que tinha escandalizado a vila nos primeiros tempos, mas depois, todos se habituaram, ele era mesmo assim.

Dirigindo-se a ele em passos largos. Tinha espelhado no rosto o sorriso de satisfação de alguém que cumpriu com gosto uma tarefa importante.

- Sr. Presidente, que o traz à casa do Senhor nesta manhã? Não me diga que necessita da ajuda divina?

- Com está, padre Mário? Há realmente alguma verdade nas suas palavras, mas também se enganou?

- Como assim?

- Realmente necessito da ajuda divina, mas quem a requer não é o Presidente da junta, mas sim o Francisco e desde já lhe confidencio quem nem é para mim, mas para uma alma pura e atormentada, a quem querem tolher os sentimentos mais cristalinos.

- Bem homem, então nesse caso é melhor não falarmos aqui no meio da igreja. Venha, vamos até à sacristia onde estaremos mais à vontade - disse o padre Mário.

Já sentados na Sacristia, o padre Mário toma a iniciativa e começa,

- Calculo que venha falar-me dessa triste história da carta e do nosso amigo Faroleiro.

- Nem mais, Padre Mário.

- Pois, já calculava. Quanto me falou em alma pura e atormentada? Não é conheça o Faroleiro, pois como sabe não vem muito por esta casa, mas já tive oportunidade de trocar algumas palavras com ele nos meus passeios pela costa e a sua descrição assenta-lhe como um luva. Então diga lá em que o posso ajudar?

- Pois, esse é mesmo o problema. Sabe, esta manhã estive à conversa com ele no farol e do fundo do coração lhe digo padre, que a história daquele homem é verdadeira, tão verdadeira como estarmos os dois, aqui, sentados neste momento.

- Saiba o meu amigo Francisco, que nunca, nem por um momento duvidei da veracidade da história, talvez por ser um homem de fé, sou levado a acreditar naquilo que os olhos não vêem.

- Curioso, padre Mário, mas na minha conversa com ele, também se falou em ver com os olhos da cara e com os olhos da alma?

- Está a ver o meu amigo, porque lhe disse que acreditei na história desde o início. A mim bastou-me trocar com ele algumas palavras, a quando dos meus passeios para lhe ver a alma, aquele homem é transparente e como tal, é fácil ver que a sua alma é pura, pelo que a sua história não podia deixar de ser verdadeira. O que me admira é o Francisco, vir até mim dizer-me que agora acredita no que apenas se pode ver com os olhos da alma? Conseguiu mais o Faroleiro numa manhã de conversa consigo, que eu em anos de tentativas em lhe mostrar que a luz se esconde um pouco em cada um de nós, mas que é necessário não desistir de a procurar. Acaba o meu amigo, sem o saber de por em causa a minha vocação. Fiquei sensibilizado com a sua mudança, mas ao mesmo tempo, fico com a dúvida se esse faroleiro não seria melhor pastor que eu?.

- Não padre Mário, esteja descansado que ninguém quer o seu lugar, até porque, desempenha a tarefa que lhe foi confiada como ninguém. Na verdade tenho de lhe confessar?

- Agora até já te queres confessar!! - atalhou o padre Mário, perplexo - Isto está lindo, está? só me faltava ouvir isso, depois de tantos anos!

- Descanse padre, que ainda não vai ser desta... - disse Francisco, por entre umas gargalhadas.

O padre Mário não pode deixar de dar também uma gargalhada e dizer em tom de brincadeira,

- Assim já fico mais descansado, estava a pensar que tinha chegado a hora de renunciar a esta minha laboriosa tarefa. Vá, então diga lá.

- O que lhe queria dizer é que não foi só a conversa com o faroleiro, eu vi algo com os olhos da cara, que pela sua beleza e singularidade me fez acreditar na história que ele conta. Como vê o seu feito, não foi assim tão grandioso.

- Todos os feitos são grandiosos, até os mais insignificantes. O importante Francisco, é que ele conseguiu que você, meu amigo, visse para além daquilo que é o mais óbvio e imediato e esse feito acredite que é algo extraordinário, independentemente de qual foi a porta de entrada. A luz desse faroleiro tocou-lhe a alma e isso é o mais notável.

- Vejamos - continuou o padre Mário - já me disse o que eu sabia, agora, o que lhe falta dizer é o que eu não sei, isto é, o que necessita de mim o Francisco ou o Faroleiro.

- Necessito saber como ajudar o Faroleiro, para que não o retirem do seu lugar no Farol.

- Questão difícil essa. Noutros tempos, em que a igreja era bem mais influente, eu poderia tentar junto da nossa hierarquia comunicar com o poder político e...  tentar, que eles vissem a luz... está-me a perceber?

Nesse momento o padre Mário remexeu-se na cadeira como se algo o perturbasse e disse com um ar sério,

-Ora bolas! Que estou eu para aqui a dizer, logo eu que nunca fui homem de meias palavras, o que estava a querer dizer é que poder-se-ia influenciar e mesmo mudar o rumo das coisas, mas hoje em dia isso é mais difícil. Compreende?

- Perfeitamente, padre Mário! E que sugere nesta situação?

- Sabe Francisco a única coisa que se ocorre é um ditado popular, vamos lá ver se o entende: "Da união nasce a força."

Depois de reflectir um pouco nas palavras do padre Mário, nos olhos de Francisco surgem umas centelhas de luz que iluminam um sorriso no rosto do padre Mário. Levantou-se e esticando a mão para se despedir do padre Mário disse:

- Já sei, padre Mário... já sei!

Já de costas, caminhando apressado em direcção à porta, ia deixando uma mensagem ao padre Mário.

- Agora tenho de ir, mas ainda vou necessitar mais uma vez da sua ajuda, em breve terá notícias minhas. Obrigado Padre Mário, mil obrigados!

- Vá em paz Francisco e quando necessitar, já sabe, a luz deste seu amigo está aqui para isso mesmo, para ajudar.


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