19 de julho de 2004

A Revelação

Contudo, a luz da esperança, em breve esmoreceu. Foi no dramático momento em que tomou consciência que a noite se abatera sobre aquela parte do globo. Era chegada a hora de enviar o sinal à sua sereia. Tinha de revelar o conteúdo daquela carta, embora soubesse que iria ser muito doloroso para ambos.
 
O sinal serviria para determinar o local de encontro. Nunca repetiam o local dos seus encontros. Era demasiado arriscado, além disso, nem queria pensar no que poderia acontecer se descobrissem que a sua sereia era real. Seria uma correria de televisões, jornais, científicos, todos mais preocupados com aqueles instantes efémeros de glória, a vitória de pousar ao lado de uma sereia, do que, com a magia de partilharmos os oceanos com criaturas tão belas e raras.
 
Escolheu cuidadosamente o local do encontro dessa noite. Lembrou o ciclo da maré e após vasculhar a sua memória pela sequência de sinais, dirigiu-se ao cimo do farol de onde emitiu a série combinada. Nunca tinha questionado como saberia ela que ele estava a transmitir, ou a que horas transmitiria o sinal, mas a verdade é que nunca tinha faltado a nenhum encontro.
 
Desceu e foi até à cozinha do farol. A cozinha, num anexo à torre principal, à qual de acedia por um porta interior, continha o essencial. Poder-se-ia até dizer que estava muito composta, visto o farol ser habitado por um homem solitário. A limpeza poderia fazer inveja a muitas cozinhas, e a arrumação, apesar do parco mobiliário fornecido pelos serviços responsáveis, estava imaculada. A um canto uma mesa, coberta por uma toalha com riscas vermelhas e brancas. Para completar, duas cadeiras contemplavam a luz da noite que timidamente entrava pela janela colocada em frente à mesa. Gostava de comer a olhar para aquele mar que lhe saciava a alma.
 
Do frigorífico, retirou alguns ingredientes com os quais preparou o jantar. Não tinha fome, mas sabia que deveria comer. Sentou-se à mesa, de frente para a janela, enquanto na sua cabeça, escrevia e reescrevia a conversa com a sua sereia.
 
Vestiu uma camisola quente, protegeu-se da humidade com um impermeável e partiu, sumindo-se na escuridão da noite. Seguiu por um trilho estreito que conduzia uma pequena enseada. Até ao momento tudo como o previsto, a maré estava no ponto exacto, tal como tinha antecipado. Desceu ao areal. Parou por uns instantes para se assegurar que ninguém o tinha seguido, depois seguiu até um dos cantos daquele pequeno areal, encravado entre as arribas da costa. Naquela ponta um conjunto rochas parecia formar um caminho que o conduziu mar dentro, até uma pequena ilha que assomava vitoriosa acima do nível da água. 
 
Sentou-se e esperou. Momentos depois, ela emerge das águas, a sua sereia. Estendeu-lhe as mãos e ajudou-a a subir para a rocha. Ela mal olhou os seus olhos percebeu imediatamente que algo não estava bem e disse-lhe:
 
- Tenho tanto para te contar, que mal posso esperar, mas vejo que algo te incomoda?
 
Ele levando a mão ao bolso retirou a carta e respondeu:
 
- Pois, na verdade tenho. O Pedro entregou-me hoje esta carta e receio que não sejam boas notícias, na verdade são terríveis. Vou ser transferido.

Na sua face, que até aí espelhava algum desassossego e medo, nasceu um sorriso e com uma leve gargalhada respondeu:
 
- É só isso. Pensava que fosse pior. Meu querido faroleiro, onde há um farol há mar e onde há mar estou eu, afinal o mar é meu!
 
Ele não respondeu e na sua face crispada ela leu aquilo que ele ainda não tinha dito . Ela não compreendendo avançou:
 
- Há mais? Diz-me por favor!
 
- Receio bem que sim - responde ele - o trabalho que me foi reservado é na cidade, numa daquelas onde não há mar, atrás de um secretária virada para alguma parede sem fim.
 
Nesse momento, ela não consegue evitar expulsar de dentro de si um grito agudo de dor, com tal intensidade, que até o silêncio da noite se calou para o ouvir. Deitou os braços ao pescoço do faroleiro, aninhou a sua cabeça no ombro dele e chorou lágrimas salgadas de mar. Ele tentava acalma-la repetindo-lhe a frase que Pedro lhe tinha dito e que ele já se repetira a si próprio muitas vezes "- tudo se há-de resolver!"
Ela inconformada, afastou-se um pouco dele e atirou a palavra que desde sempre foi o motor da humanidade:
 
- Porquê?
 
Ele, tentando manter a calma, contou-lhe que tinham chegado notícias de que ele andava a ver sereias e os senhores do ministério tinham medo que ele não estivesse no seu juízo mais perfeito. Isso, a ser verdade, poderia constituir um perigo para todos aqueles que dependem da luz do farol para viajar em segurança.
 
Num arrebato ela declarou,
 
- O meu desejo era mostrar-me a todo esse povo, assim saberiam que é verdade, que tu faroleiro és um privilegiado e que isso acontece porque os teus sentimentos são puros.
 
- Não podes! - disse ele, tão rápido quanto lhe foi possível. - Isso seria o teu fim, o teu e de todas aquelas belas criaturas que contigo habitam este mar de sonho.
 
Nesse momento ouvem-se ao longe vozes e aparecem no cimo da falésia raios de luz que se perdem no horizonte. Ela beija carinhosamente o faroleiro e desaparece nas águas. Ao longe alguém grita:
 
- Está ali alguém! Vejam no cimo da rocha.
 
Era Francisco, o presidente da junta de freguesia que acompanhado por alguns locais tinham decidido ir investigar. Conversavam no Ocaso, quando ouviram o grito, que por lhes parecer tão profundo, não resistiram a ir verificar.
 
Desceram com rapidez o trilho que conduzia ao areal, enquanto ele fazia o caminho de volta saltitando pelas rochas a coberto da escuridão, de tal modo que, quem desconhecesse a existência das rochas afirmaria sem sombra de dúvida que caminhava sobre a água.
 
Já no areal as questões triviais.
 
- Que aconteceu? Viu alguém? Onde estava? Quem era? 
  
E por fim a derradeira:
 
- Que motivo levaria alguém a dar um grito assim?
 
O porquê, sempre o porquê, pensou ele...
 
Francisco mais arguto, perguntou simplesmente o que fazia ele ali.
 
- Ouvi, como o meu amigo, o grito e uma vez que andava por perto vim investigar. Subi às rochas para ver se via algo no mar, mas infelizmente....
 
João, um "bom vivant" local que se governava de um biscates que fazia no verão e às custas de sua mãe durante o Inverno, dirigiu-lhe uma provocação no seu melhor estilo desbocado e irónico.
 
- Quem sabe se não andava à pesca de alguma sereia...
 
Os olhares dos restantes, conhecedores do conteúdo da carta, não podiam ter sido mais explícitos. Apenas o faroleiro, com um ar mais descontraído sorriu e disse: 
  
- Quem sabe, quem sabe... Uma coisa é certa, João, você nunca o saberá.
 
- Bem uma vez que não indícios de qualquer acidente proponho que voltemos rapidamente, pois a maré vai subir e dentro de momentos este areal vai deixar de existir - disse Francisco, que apesar dos anos que tinha passado fora da vila para estudar, continuava a conhecer o mar, as marés e costa como poucos.
 
Assim seguiram pela falésia a cima, em fila como se de uma excursão de meninos de tratasse. No entanto, de entre aqueles homens, dois tinham pensamentos muito próprios. Francisco, pensava que na manhã seguinte tinha de ir falar com o faroleiro, pois algo o incomodava, embora não conseguisse precisar o quê.
 
Dentro da cabeça do faroleiro ecoava ainda o grito de dor da sua sereia e um pensamento atravessava-lhe o coração vezes sem conta:
 
Como a vida os tinha lixado.


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