20 de julho de 2004

A Visita

Chegados ao cimo da falésia, foram as tradicionais despedidas, com votos de boa noite. Francisco e seus acompanhantes seguiram em direcção ao Ocaso, enquanto ele seguiu em direcção ao farol, mas sem nunca afastar demasiado o olhar do mar, talvez ela...

Chegado ao farol, passou pela cozinha, onde apanhou uma bebida e subiu ao cimo da torre principal. Não seria fácil dormir naquela noite. Por um lado a carta, para a qual ainda não tinha uma resposta. Mas a determinação da sua sereia em o seguir acariciava-o, como se tal fosse possível, para a cidade, sem mar, sem os reflexos dourados do sol na superfície da água e aquele pôr-do-sol, laranja sobre azul que tanto os encantava.

Também o perigo de serem descobertos, que tão próximo esteve nessa noite o atormentava. O ar frio da noite no seu rosto, ainda o mantinha mais desperto. Decidiu descer, e fazer um esforço, afinal tinha de manter um pensamento fresco e lúcido, tinha muitos problemas para resolver e não poderia dar ideia de estar a perder a sua lucidez.

Enquanto isso, também Francisco estava com dificuldades para dormir. Reviu vezes sem conta aquele encontro com o faroleiro e a sua presença naquele areal continuava a intriga-lo. Não era propriamente a sua presença no areal, mas o seu passeio pelas rochas. Além disso era capaz de jurar que o tinha visto levar a mão à boca e fazer um gesto semelhante a quem sopra um beijo, e logo em direcção ao mar. Na manhã seguinte iria falar com ele, sem falta.

A manhã seguinte acordou com o sol radioso que teimava em penetrar as cortinas de linho, que uma simpática senhora da vila tinha insistido em colocar nas suas janelas. Disse-lhe que assim o farol teria mais aspecto de um lar, um lar feliz.

Levantou-se para a sua rotina matinal. Casa de banho, cozinha e depois a rega do jardim. Quando se preparava para a rega, eis que surge Francisco.

-Olá homem, então a tratar das flores?

Estranhou ver Francisco por ali, embora fossem amigos, nunca o fora visitar ao farol. E logo no início da manhã, havia ali algo...

- Olá Francisco, seja bem-vindo ao farol. Creio que é a primeira vez que vem, apeteceu-lhe esticar as pernas depois do passeio nocturno de ontem?

Vendo que a sua ausência passada, ou a sua actual presença no foral tinha sido notada, não esteve com mais rodeios e foi directo ao assunto.

- Vejo que o meu amigo é como eu, directo, ainda que o suficientemente esperto para não ser áspero. Na verdade como já compreendeu venho para conversar consigo sobre o assunto da carta e o nosso encontro de ontem à noite.

- Vai-me desculpar Francisco, mas não sei se quero falar desses assuntos, que na verdade são o mesmo e um único assunto.

- Então homem, parece-lhe que os problemas se resolvem por si? Tenha confiança, sei que esta solidão que o acompanha no farol não ajuda, mas abrir as gavetas da alma, de vez em quando, faz bem!

E continuou:

- Além disso vai necessitar toda a ajuda que conseguirmos para tentar encontrar uma solução. Sei que não quer partir e nós, falo por mim, mas creio que é a opinião de toda a vila, também não queremos que nos abandone. A sua estadia aqui no farol é uma inspiração para todos nós. Nos momentos de fraqueza penso em si aqui sozinho, mas sempre alerta para ajudar aquelas embarcações que ao longe observam a luz do farol, sem um obrigado ou um adeus. Percebe o que quero dizer?

- Creio que sim, amigo Francisco. Entre, acho que lhe vou contar uma história e quem sabe, talvez até, abrir alguma das gavetas desta alma. O melhor mesmo será conversar aqui fora, creio que a imagem do mar me dá a coragem que à pouco referiu.

Sentaram-se numas cadeiras de madeira que na traseira do farol olhavam o mar, juntamente com uma mesa que, apesar das camadas de verniz, mostrava claros sinais da agressividade daquele ambiente.

Sentaram-se e ele disse:

- Que quer saber o amigo Francisco, ou será o Sr. Presidente?

- Aqui estou como amigo, o presidente, esse podemos chama-lo apenas se o necessitarmos. - retorquiu Francisco - Para lhe ser verdadeiramente franco a história da sua sereia também me espantou e cheguei mesmo a pensar que a solidão o tivesse afectado, mas a sua calma de ontem à noite, mesmo com a provocação daquele desbocado do João Areias, mostrou-me que não. Além disso era capaz de jurar que o vi soprar um beijo em direcção mar? Claro que não contei nada disto aos outros!

- Viu e viu muito bem caro Francisco. Ontem eu estava naquela rocha com ela, a minha sereia de cabelos ondulados como o mar e olhos transparentes, meigos e doces, como o meu amigo não consegue imaginar. Basta um olhar dela para nos enfeitiçar.

- Sabe que essa história é toda ela demasiado incrível para que alguém acredite? Tem consciência disso?

- Claro que tenho! - disse o Faroleiro - Pensa o meu amigo que sou ingénuo? Porque pensa que não ando a espalhar por aí que me encontro com uma sereia, que acredito, me ama? Foi um azar, aquela noite em que me esqueci de acender o farol e ela veio à minha procura. Digo azar porque no delírio do recobro da consciência falei demais e logo junto de pessoas... bem mas o que está feito, feito está.

- Mas...?!? E o futuro???

- Uma incógnita caro amigo! Dúvidas e mais dúvidas e no meio de tanta dúvida, a esperança e uma certeza, não quero perder de vista a minha sereia.

- Isso é muito bonito, um pouco lírico, contudo! - disse Francisco.

Aqui o faroleiro respondeu-lhe com duas questões.

- E o meu amigo tempera a comida com quê?

- Como espera que eu tempere a minha vida?

- Pois olhe, eu escolhi temperar a minha vida com o doce amor da minha sereia. Olhe, agora, vou-lhe abrir uma gaveta da minha alma e mostrar-lhe algo que nunca ninguém viu.

Colocou a mão no bolso de onde retirou uma bolsa de veludo preto que colocou sobre a mesa. Delicadamente abriu a bolsa e à luz do sol brilharam os dois cristais com as lágrimas que derramara do cimo do farol encerradas no seu interior.

- Posso tocar-lhes? - Perguntou Francisco.

- Claro que pode amigo!

Francisco pegou num dos cristais que observou com atenção. Colocou-o contra o sol e viu o líquido encerrado lá dentro. Tinha uns reflexos incríveis. A lapidação era perfeita, e aquele liquido no seu interior... Não era possível!

Francisco, não era propriamente um especialista em pedras, mas o seu avô, fora ourives e tinha-lhe ensinado muito da arte, quando em pequeno brincava na ourivesaria, pois no Inverno o movimento não era muito e ele tinha uma grande paixão pelo neto.

- Que me diz desses cristais? - Perguntou o Faroleiro

- Digo-lhe que não são cristais vulgares, pela talha e pelo brilho era capaz de jurar sobre a tumba do meu avô que isto são...

Ficou calado por uns instantes e depois continuou,

- Mas é impossível encerrar um líquido deste modo no interior de...

- Sabe que se o que estou a pensar for verdade, estes cristais, como você lhe chama, valem uma fortuna?

- Sei sim, amigo Francisco, e ainda lhe digo mais, esses cristais não têm valor!

Francisco olhou de frente para ele com um ar meio aparvalhado.

No meio de uma gargalhada e acompanhada por um grande sorriso a resposta chegou.

- Vejo que entendeu tudo ao contrário, esses cristais independentemente de serem de um cristal reles ou diamantes como julgo que é o seu pensamento, não têm valor, porque não os venderia por dinheiro algum, foi a sereia quem me os deu, e encerram duas lágrimas que por ela verti num momento de desespero.

Francisco sorriu e posou o cristal no saco que fechou com cuidado. Pegou-lhe e estendeu a mão ao Faroleiro que os guardou no bolso.

- Se não tivesse visto nunca teria acreditado, agora lhe digo com toda a sinceridade, tinha esperança que a sua história fosse verdadeira, pois não queria despedir-me de si e agora que sei é verdadeira, a minha vontade de o manter aqui, junto da sua sereia é mil vezes mais forte.

Nesse momento estendeu-lhe a mão num gesto de amizade, ao qual o Faroleiro retribuiu com um forte aperto, enquanto lhe dizia:

- Caro amigo Francisco, o meu amigo apesar de ser uma daquelas pessoas que vê com os olhos da cara tem uma alma corajosa e limpa, mas com a mesma franqueza com que me falou, lhe digo, que alguns de nós vêem com os olhos da alma e não devemos ignorar nem duvidar das suas verdades. Agora lhe peço que guarde este segredo numa das gavetas da sua alma, pois muitas alma não estão preparadas para compreender o que lhes chega pelo olhos da cara, quanto mais pelos da alma.

Francisco sorriu e compreendeu aquela mensagem de luz que o Faroleiro lhe tinha querido enviar.


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