A Disseminação da Luz
Terminou de escrever o bilhete para o padre Mário que encerrou num envelope da Junta. Virou o envelope, traçou com duas linhas fortes o nome da Junta e no lugar do remetente escreveu o seu nome "Francisco Ramos". Acrescentou o destinatário e a indicação P.M.P.
Recostou-se na cadeira, e descansou com o olhar perdido muito além do tecto. No rosto o sorriso da esperança e a sensação da missão cumprida proporcionou-lhe uma paz interior que o transportou para um mundo de sonho, o mundo do seu amigo Faroleiro.
Perdeu a noção do tempo enquanto vogava por aquele mundo de sonho, habitado por sereias, ninfas, cavalos-marinhos, polvos e todas as criaturas que povoam a profundeza dos oceanos. Viu Neptuno e Nereu com as suas cinquenta filhas, com as quais visitou a cidade perdida da Atlântida, construiu castelos de areia e brincou em jardins de corais. Pintou de azul as cristalinas águas dos trópicos e como um oleiro ajudou a deu forma a belas conchas e búzios. Viu Tritão, filho de Anfitrite, soprar a sua concha para acalmar os movimentos do mar, e por fim descansou, numa cama de espuma branca.
Voltou à superfície quando Júlio do lado da secretaria, bateu à porta interior.
- Sim, entre! - respondeu.
- Desculpe Sr. Presidente, mas o Carlinhos já voltou e se o senhor Presidente tiver o bilhetinho para o Sr. Padre Mário, ele podia ir entregar agora.
- O Carlinhos já afixou os cartazes todos? - disse com admiração - Realmente esse rapaz é uma verdadeira surpresa.
- Sr. Presidente, já passou mais de uma hora desde que ele saiu?
- hã, pois... nem tinha dado conta do tempo passar. Aqui tem o bilhete, Júlio.
Júlio abandonou o gabinete e Francisco tentou recuperar a rota da viagem que tinha abandonado com a entrada de Júlio. Mas nada, na sua mente apenas a recordação daquele passeio inesquecível. Olhou o relógio e viu que já passava bastante da hora da Junta fechar.
Levantou-se e foi directo à secretaria. Carlinhos preparava-se para ir ao encontro do Padre Mário, Mas foi travado pela voz de Francisco.
- Carlos, espere um pouco.
Embora para ele fosse sempre o Carlinhos, em público tratava-o sempre por Carlos, queria que ele sentisse que tinha um tratamento igual a todos os funcionários da junta, pois não queria provocar nele qualquer sentimento de inferioridade.
- Estava a pensar que podíamos ir todos tomar um fino ao Ocaso. Afinal hoje é sexta-feira e apetece-me ver o mar. Depois podemos passar pelo hotel e Jantar na esplanada e de lá ver o pôr-do-sol.
- Mas Sr. Presidente, eu tenho de ir a casa do Sr. Padre Mário?
- Vá Carlos, aproveite, passe por casa e avise a sua mãe que hoje janta comigo no hotel. E você Júlio, anima-se?
- Sr. Presidente, a minha patroa?
- Ande lá homem, que um dia não são dias, quer ver.
Sem mais, Francisco pega no telefone e liga para casa de Júlio.
- Olá Catarina, é o Francisco. Então os meninos estão bem?
- Folgo em saber isso - respondeu à réplica de Catarina. - Olhe hoje o Júlio vai jantar comigo ao hotel se não se importar.
Catarina responde algo, a que Francisco responde com um:
- Então está combinado.
Virando-se para Júlio,
- Estás a ver, como já está tudo resolvido.
Saíram os três da sede da Junta. Carlinhos dirigiu-se a casa do Padre Mário, enquanto Júlio e Francisco seguiram para o Ocaso.
Enquanto percorriam as ruas estreitas, onde o cheiro dos grelhados de peixe e carne se baralhavam e lutavam ferozmente para ocupar um lugar no olfacto dos transeuntes, Júlio, não conseguindo conter a sua curiosidade pergunta:
- Ó Francisco, diz-me lá para que é aquela reunião. Tem algo a ver com a história do faroleiro?
- É claro que tem, Júlio! Hoje falei com o Padre Mário e ele disse-me algo que pode ser a salvação do Faroleiro.
- Mas tu acreditas mesmo na história da sereia que aquele maluco inventou?
Nesse momento a cara de Francisco crispou-se e olhou, primeiro com ar zangado para Júlio que se encolheu e curvou todo por dentro. Mas depois a face de Francisco desenrugou-se e o seu rosto espelhou uma expressão de compreensão que reflectia igualmente alguma pena daquela alma que era cega.
- Meu caro Júlio, por que não acreditas tu?
- Ora Francisco onde já se viu sereias??? Todos sabem que isso é uma invenção de marinheiros que em momentos de delírio, provocado pela solidão das longas viagens pelo mar, as inventavam, para confortar o seu desespero e tentar apagar a amargura que os assolava tal qual as ondas tentavam fazer ao frágil casco da embarcação.
- Agora diz-me tu Júlio. Já alguma vez viste o ar que respiras?
- Não nunca o vi. Mas que tem isso a ver? - Disse Júlio baralhado.
- Mas acreditas que ele te entra pelo nariz, vai até aos pulmões alimentar os glóbulos vermelhos de oxigénio.
- Sim, toda a gente sabe isso.
- E mais, já alguma vez viste uma planta respirar?
- Claro que não, mas diz logo onde queres chegar que esta conversa já me começa a irritar.
Júlio mostrava-se cada vez mais impaciente, não percebia onde queria Francisco chegar com aquela conversa, mas sentia que estava a perder aquele jogo.
- Calma, tem calma, que já lá chegamos. Mas sabes que elas, de alguma forma, respiram e até libertam oxigénio?
- Claro que sim, aprendi na escola que esse processo se chama fotossíntese.
- Pois meu caro Júlio, como te ensinaram na escola tu acreditas que respiras um ar que nunca viste, e que até as plantas respiram, mas não acreditas em sereias. Não te falaram delas também na escola?
- Falaram, mas sempre me disseram que elas não existiam.
- Pois bem, meu caro, o problema é mesmo esse, tu não acreditas, porque te disseram que elas não existem, mas que prova tens tu?
- Nenhuma... - disse o resignado Júlio.
- Agora pensa e diz-me quem é mais maluco o Faroleiro que viu a sereia e portanto acredita, ou tu, que sem prova nenhuma, afirmas com a segurança do nada que elas não existem. E o maluco é ele...!
Aí, Júlio calou-se e assim foi, até que chegarem ao Ocaso.
Sentaram-se numa mesa, onde momentos depois chegava Carlinhos.
- Desculpe Sr. Presidente, atrasei-me um pouco porque o Padre Mário insistiu em ler o seu bilhete, pois não sabia se tinha de dar alguma resposta. Por fim disse-me que o Sr. Presidente podia contar a sua colaboração e que não faltaria à reunião de segunda-feira.
- Obrigado Carlos.
Francisco, levantando a mão, gritou,
- Manel são três finos, e já agora, arranja um prato de caracóis que hoje fizemos por merecer este momento de luz.
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