A Preparação
Francisco saiu da igreja em passo apressado em direcção à sede da Junta de Freguesia. Enquanto percorria as ruas irregularmente empedradas da vila, uma ideia ia tomando forma na sua cabeça. Quem o visse a gesticular, quase a falar sozinho, com o olhar perdido num destino que nunca se atinge, até pensaria que era ele quem perdera o juízo, não o seu amigo Faroleiro. A sua rápida caminhada, alimentada por passos largos, era por vezes interrompida por um aceno de mão, um cumprimento e até mesmo por um beijo.
Ao passar junto ao mercado da vila é que foi literalmente barrado no seu intento de chegar à sede da Junta. Quatro mulheres colocaram-se de tal forma à sua frente, que por pouco, este não as derruba. Com o pensamento e a vista muito longe nem deu conta da sua intenção. Parou para lhes falar.
Francisco, não era propriamente um político no sentido mais negativo da palavra, na verdade de político tinha muito pouco. A não ser uma simpatia natural e uma disponibilidade total para beijos e conversas, nunca prometia nada que soubesse não poder cumprir e não se furtava a dizer não, quando tal era necessário.
A sua eleição para a presidência da Junta tinha sido quase um acidente. Tinha voltado da cidade após terminar o seu curso - que na terra nem ninguém sabia muito bem qual era - para assumir alguns negócios que o seu falecido pai lhe tinha deixado. Filho único, acabou por se embeiçar por uma bela moça que era empregada no pequeno hotel que o seu pai tinha construído num local privilegiado da costa, mesmo junto à marginal e com vista para o pôr-do-sol "mais lindo do mundo", como gostava de lhe chamar. Já da sua lavra, tinha mandado reformar o hotel e colocado o restaurante, ao qual adicionara uma belíssima esplanada, numa posição ímpar para apreciar toda a beleza daquelas vistas. Quem não gostou muito foi o Manel, proprietário do Ocaso, até esse momento detentor exclusivo dos direitos de vistas sobre tão apreciado fenómeno, mas nunca este facto gerou qualquer atrito entre ambos, e prova disso eram as visitas de Francisco ao Ocaso nalgumas tardes para se sentar na esplanada e dali apreciar a beleza daquele momento fugaz.
O "Sô Dotor" como alguns lhe chamavam, fora pescado por uma força politica minoritária, bem..., em abono da verdade, foi um "quase irmão" de seu pai quem lhe pediu para ser o cabeça de lista, pois não tinham mais ninguém e ele não teve coragem para lhe dizer não. Já em cima das eleições o candidato mais bem posicionado e presidente da Junta desde tempos imemoriais, foi acometido por doença súbita, estranhamente, no dia seguinte a uma jantarada do partido, precisamente no hotel de Francisco - de seu nome, Pôr-do-sol - o que chegou ainda a gerar algumas suspeições, mas que pouco depois se vieram a mostrar completamente infundadas. E assim chegou o nosso "Dotor" a presidente da Junta.
Depois de distribuir oito beijos pelas suas eleitoras "favoritas" - nas suas palavras - começou o rol de queixas. Dª Manuela, queixava-se do empedrado das ruas que lhe estragam a bengala, Dª Albertina dizia que mercado estava muito sujo, era necessário reforçar a limpeza, ai se ela pudesse... mas a idade... Dª Agostinha queixava-se quem ninguém se importava com os mais idosos, ninguém dava ouvidos os seus problemas, que o Sr. Presidente era muito simpático, mas era o único que os ouvia, mas sabiam que sozinho pouco podia fazer, mas se conseguisse um lar lá para a terra, até lhe colocariam o seu nome. Por fim Dª Pilar, uma Alentejana, importada por via da filha que, fascinada pelo mar, se tinha mudado para a vila há uns anos e nutria por Francisco um sentimento maternal, lhe disse:
- Vá Francisco, vá! Se aqui fica estas velhas resmungonas não o largam e vejo que algo o preocupa, vá antes que se faça tarde.
Despediu-se com cortesia e quando se afastava, Dª Pilar ainda lhe atirou uma frase, cujo significado não foi capaz de compreender completamente, pois parecia que lhe tinha lido o pensamento,
- Transmita os meus cumprimentos ao seu atormentado amigo e ele que não se preocupe, a maior das forças ilumina-o!
Será que ela se referia à ideia que na sua cabeça tomava forma? - pensou.
Tentou evitar as ruas mais movimentadas, para não ser novamente interrompido na sua viagem por mais algum semáforo que acendesse a luz vermelha à sua passagem.
Finalmente a Junta aparecia à sua frente. Era um edifício de um único piso. As linhas arquitectónicas faziam lembrar as escolas primárias do Estado Novo, com um mastro ao centro para colocação da bandeira. Janelas nos lados e uma porta ao meio, que propagava a claridade exterior pelo corredor central. À esquerda duas portas, a da sala da assembleia e mais ao fundo, outra, a das casas de banho, à direita duas portas de acesso à secretaria e ao fundo, mesmo em frente, na extremidade oposta à da entrada, estava a porta do gabinete do presidente, que do seu interior dava acesso directo à secretaria.
Entrou apressado direito ao gabinete. Sentou-se, puxou por uma folha e começou a escrever sobre ela. Leu o que tinha escrito, pensou que tinha de falar com o presidente do grupo recreativo da vila e deu uma gargalhada ao lembrar que era ele também o presidente do grupo recreativo. Fez duas ou três correcções e chamou o secretário.
- Júlio, Júlio! Faça-me um favor e passe-me este edital para papel timbrado da Junta. Depois peça ao Carlinhos para o afixar nos locais de costume.
Carlinhos era um jovem que tinha problemas de aprendizagem. Até Francisco assumir a presidência da junta, vivia a fazer biscates pela vila, muitas vezes cruelmente explorado por pessoas sem escrúpulos. Francisco tinha-o contratado para a junta e ele tinha-se revelado um excelente funcionário, pontual nas entradas, não tanto nas saídas e sempre disponível para ajudar, mesmo naquilo em que manifestamente não podia.
Quando Júlio se preparava para sair do gabinete, Francisco travou-o para lhe dizer que era melhor fazer umas cópias a mais.
- O Carlinhos que as afixe por todo o lado, quero o salão do grupo recreativo cheio.
Acrescentou ainda:
- Ele que leve também uma ao Padre Mário, juntamente com o bilhete que lhe vou mandar.
O Edital convocava uma reunião com todos os habitantes da vila, pois acreditava que seria a luz daquela união que salvaria o seu amigo Faroleiro.
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