27 de julho de 2004

A Reunião

Chegara finalmente o dia da reunião. A escolha da segunda-feira tinha sido propositada. Aquele era um dia mais calmo na vila, depois da correria dos domingos, em que a vila se enchia de banhistas de fim-de-semana, que procuram aliviar o stress e ganhar força para mais uma semana se trabalho sob o calor sufocante do verão.

Dez horas da manhã. A população acotovelava-se para entrar no salão do grupo recreativo. Lá dentro, uma sala cheia, tão cheia que até as paredes pareciam arquear com a pressão daquela massa humana. A curiosidade tinha cumprido primorosamente a sua missão. Todos sabiam qual o tema da reunião, mas mesmo assim, ninguém queria perder uma palavra que fosse, estavam suspensos daquilo que o Presidente da Junta iria dizer sobre o Faroleiro e a sua Sereia.

Na primeira fila, o padre Mário acompanhado de outros madrugadores conversavam animadamente.

Francisco chamou Júlio e perguntou-lhe como estava a situação lá fora.
Falando-lhe ao ouvido, disse:

- Complicada, muito complicada. Está um mar de gente do lado de fora. A confusão é grande, todos querem entrar, não sei como vamos fazer...

Francisco, notoriamente preocupado, caminhava de um lado para o outro da sala, enquanto procurava uma solução. Talvez colocar um megafone no exterior para que todos pudessem ouvir, lembrou.

Tenha de dizer algo. Dirigiu-se para um canto da sala onde um estrado usado como pódio nas competições da terra permanecia em repouso. Subiu para o palanque improvisado e o silêncio tomou conta da sala.

- Amigos, temos um problema. Estamos todos muito apertados aqui dentro, e lá fora está um mar de gente para entrar, nestas condições...

Nesse momento do seu lugar na primeira fila o padre Mário faz-lhe um sinal muito expressivo indicando que desejava falar com ele com urgência.

- Desculpem-me um momento, mas aqui o nosso pároco requer a minha atenção, entretanto se alguém tiver uma solução...
Desceu do pódio e aproximou-se do Padre Mário, que lhe disse:

- Olhe lá Francisco, será que esta gente toda não cabe na igreja? Podia fazer-se lá a reunião e o problema estava resolvido.

Francisco estava habituado aos comportamentos, aparentemente estranhos do padre Mário, mas para aquele é que não estava preparado. Uma reunião na igreja! Essa era uma coisa nunca vista!

- Mas padre Mário... parece-lhe apropriado? - disse Francisco com um ar meio apatetado.

- Meu filho, Deus não escreve direito por linhas tortas? Acho que ele não se vai importar de ver a igreja repleta de pessoas, o que, aliás já não acontece à muito tempo. Além disso o motivo desta reunião não é a sublimação do amor, do amor entre duas criaturas de Deus? Só se o meu amigo não se sentir à vontade a falar do púlpito, pois nesse caso...

Padre Mário diz a última frase com uma expressão traquina e ao mesmo tempo desafiadora. Francisco sorriu e visivelmente emocionado apertou a mão ao padre Mário dizendo:

- Nem sei como lhe agradecer...

- Não se preocupe Francisco, que eu hei-de lembra-lo quando a igreja necessitar de alguma reparação. - disse o padre Mário fazendo mais uma daquelas expressões de criança travessa.

Francisco voltou a subir para o palanque e avisou que a reunião teria lugar na igreja, onde estariam mais confortáveis.

Foi uma correria, a daquela gente toda em direcção à igreja. Padre Mário, um fã dos ditados populares, aproveitou para deliciar com mais um, aqueles que a seu lado se encontravam.

- Vejam como o povo tem razão, "os primeiros são os últimos e os últimos são os primeiros". Aqui dentro éramos os primeiros mas agora os que estavam lá fora serão os primeiros a chegar à igreja.

Com a igreja repleta, como nunca se vira na terra, Francisco subiu ao púlpito. Olhou com atenção aquela imensidão de gente que ansiava pelas suas palavras.

Reparou que estavam lá todas as pessoas da terra. Os estabelecimentos estavam todos fechados e as ruas estariam desertas, não fossem alguns turistas que teimavam em procurar um lugar para tomar algo antes de se irem estender no areal. Viu também algumas caras desconhecidas, mas que depressa associou a pessoas de cidade que tinham casa de férias ali na vila.

Do alto do púlpito do padre Mário, começou:

- Bem, hoje pode dizer-se que sou um político satisfeito, pois nunca pensei fazer um comício com uma tal assistência, se os Srs. políticos da cidade me vissem agora?
Uma gargalhada geral irrompeu na igreja ocupando o pouco espaço disponível. Francisco dirigiu o olhar para o padre Mário que também ria.

- Desculpe padre, mas uma assistência assim é o desejo de qualquer um...

A isto anuiu o padre com cabeça, também ele desejava ter a igreja assim decorada todos os dias.

Virando-se novamente para as pessoas, que à sua frente, aguardavam pelas suas palavras, continuou,

- Não vou alongar-me com considerações sobre o motivo desta reunião, penso que todos o sabem. Trata-se da tentativa do Ministério para levar da vila o nosso Faroleiro, que como também sabem não pode partir, porque assim, teria de abandonar o amor da sua Sereia. Sei também, porque até já conversei com alguns de vocês?

Neste momento procurou com olhar os pescadores com quem tinha conversado junto ao muro da marginal e observou como acenavam afirmativamente com a cabeça.

- Como estava a dizer, sei que alguns de vocês não acreditam em histórias de sereias e como tal, esta história de amor entre o Faroleiro e a Sereia não passa para vos de uma ilusão, um sonho. Mas é com o coração nas mãos...

Enquanto dizia isto, levou a mão ao peito, como se quisesse agarrar mesmo o coração.

-...que vos afirmo que a história daquele homem é verdadeira, tão verdadeira como eu estar aqui neste momento a falar para vós na igreja, quem diria não é? Eu vi com os meus próprios olhos e por mais de uma vez provas do que vos digo, não posso como devem compreender revelar mais pormenores, apenas vos peço para creditarem. Abram os olhos das vossas almas e deixem entrar a luz, a luz de um amor maior.

Neste momento os pescadores com quem conversara decidiram ajudar Francisco e começou a ouvir-se em vários pontos da igreja a frase.

- Se o Sr. Presidente diz que viu e acredita, a mim basta-me!

- A mim também! - disse outro.

-E a mim!

A frase repetiu-se tantas vezes, quantas as pessoas que enchiam a igreja.

Padre Mário não escondia a sua emoção, nunca tinha visto um discurso tão curto provocar tal onda de emoções. Se calhar era isso mesmo que aquela gente ansiava, ter algo em que acreditar - pensou.

Ultrapassado o clímax do momento, Francisco continuou emocionado,

- O vosso apoio e a vossa confiança deixam-me emocionado, mas agora é necessário pensar o que podemos fazer para evitar a partida do faroleiro. O padre Mário sugeriu que apenas a união poderia evitar esta catástrofe.

Agora faltavam as sugestões daquele povo, que como luzinhas pequenas resplandecentes poderiam traçar uma via láctea em direcção à solução.


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