6 de setembro de 2004

A viagem

Sentado lia um livro, enquanto esperava pelo autocarro. Lia atentamente, cada palavra, cada vírgula, cada ponto final, cada silêncio delator, procurando saborear cada pensamento esmeradamente esculpido em cada frase.

Podia até dizer-vos o título do livro, mas não interessa, basta saberem que não era um daqueles que podemos comparar com um prato ultracongelado que se coloca no microondas e está pronto em minutos, este pertencia o outro tipo de "dieta gastronómica".

Aquela rua estava deserta, nem um carro, nem uma pessoa, ninguém passava por ali àquela hora. Apenas uma leve brisa de ar sibilava à sua esquerda e a ténue luz do candeeiro à sua direita lançavam uma luz sobre a escura solidão daquela noite.

Olhou o relógio, já era muito tarde, mas, incrivelmente o autocarro não estava atrasado. Nunca tinha pensado nisso, mas aquele autocarro nunca se atrasava verdadeiramente. Independentemente das horas a que chegava, aparecia sempre pontualmente no momento em que devia aparecer, livre de reclamações ou da tirania da tesoura que no pulso corta impiedosamente pedaços da peça de tecido da vida.

Enquanto aguardava pela sua chegada, pontualmente tardia, leu mais algumas páginas, até que, através dos seus olhos semicerrados o viu aproximar-se, lentamente mas seguro.

Colocou cuidadosamente o marcador no interior do livro que fechou e com a pouca visão que ainda lhe restava enquanto o seu cansado olhar fixava a frente do autocarro. Seguindo algo que parecia escrito em alemão, lá estava o seu destino em letras verdes brilhantes "Sono". Sem reclamar da longa espera subiu para o autocarro e procurou um assento. Não foi difícil, pois estava vazio, como se o viesse buscar apenas a ele. Procurou o melhor lugar, pousou o livro a seu lado e com movimentos lentos procurou ajustar o seu corpo ao espaço disponível, ciente que no final da viagem o aguardaria um novo dia.

Os seus olhos semicerrados adormeceram embalados pelo balançar do cansaço que alimentava o motor do veículo que agora o transportava. Seria possível que tivesse ainda de fazer um transbordo para o comboio do sonho, mas não tinha a certeza, nunca havia certeza, às vezes, mesmo depois da viagem, a dúvida permanecia, outras havia em que recordava com uma surpreendente nitidez a viagem nas carruagens do sonho.

Naquela noite todos os horários foram cumpridos e assim, na paragem junto à gare do sonhos, viu que na linha do sonho, um comboio permanecia imóvel, atrelado a diversas carruagens, cor-de-rosa, amarela, verde, vermelha, branca e mais para o fundo a inevitáveis carruagens cinzenta e negra.

Sem pensar, sem consciência das suas escolhas, tomou lugar numa das carruagens. Nem reparou qual a cor da carruagem, mas essa também não era uma escolha que lhe estivesse destinada, esperava apenas que lhe proporcionasse uma viagem calma, agradável com suavidade e conforto até ao seu destino.

Lá dentro viajavam outras pessoas, mas uma atraiu a sua atenção. Não lhe conseguia ver o rosto da posição onde se encontrava, mas algo o fazia tremer sempre que a olhava. Não compreendia a atracção que sentiu mal pousou os olhos nela, a cor da sua pele, os cabelos, a forma como estava vestida, as pernas que se escondiam debaixo de umas calças de corte perfeito e a elegância da silhueta. Tudo junto gerava nele aquele tremor tipicamente alcoólico, que se alguém alguma vez lhe descrevesse diria tratar-se de um sonho. Sonho, era curioso, mas esse era mesmo o nome daquele comboio - que coincidência! Pensou.

Procurou o melhor lugar para apreciar a viagem, mas sem nunca a perder de vista. Passados alguns instantes decidiu tentar uma aproximação. Sem se mexer significativamente da sua posição na carruagem, procurou acercar-se a ela. Contudo apesar dos seus intentos, nunca conseguiu coroar de sucesso os seus desejos. Cada vez que aproximava começava a ficar mais e mais e mais nervoso, o seu coração batia descompassado e a sua cabeça perdia o sentido da orientação e então, então parecia que ela se afastava dele, que na sua desorientação, não conseguia perceber qual a direcção seguida. Estava perdido!

Foi então, que uma travagem brusca o atirou para fora do assento naquela carruagem do comboio, que percorria até aí sem sobressaltos, a linha do sonho.
O grito estridente do despertador avisava para a existência de um obstáculo na linha.

Terminava ali a sua viagem. Abriu os olhos e viu na luz da manhã, que obstinadamente invadia o quarto, um reflexo pálido da viagem daquela noite.

Depois rodou, sobre si na cama abraçando-a. Colocou a mão sobre o ventre dela e suavemente aproximou os lábios do ouvido. Então carinhosamente sussurrou:

Esta noite sonhei contigo.


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