O Telefonema (Um final possível)
Sentiu um enorme peso sobre o seu coração, uma lápide que o encerrava numa escuridão solitária. Simultaneamente sentiu um tremor no lado esquerdo do peito, ema espécie de palpitar apressado, uma arritmia cardíaca. Sentiu-se fraquejar e abruptamente deixou cair o telefone que segurava e de onde provinha aquele implacável Pii..pii..pii..pii..pii..pii..pii..pii
Uma nuvem sombria atravessou movida por ventos alucinados e sem pensar dirigiu a sua mão direita para o interior do casaco antracite procurando suster sem sucesso aquele pulsar desenfreado. A mão reapareceu momentos depois, após ter recolhido no bolso especial do seu casaco de marca o telemóvel que continuava a vibrar incansável.
Sentiu crescer dentro de si emoção, num crescente cadenciado com o vibrar do pequeno aparelho, enquanto pensava se era ela que lhe ligava.
Só podia ser, por isso o telemóvel dela estava impedido.
Com a inigualável habilidade de um acrobata rodou o telemóvel entre os seus dedos, de forma a poder traçar uma linha recta perfeita, sem curvas nem cortes, entre os seus olhos e o visor fluorescente, de onde a calma e a tranquilidade que ansiava despontaria. Traçou com o olhar a linha imaginária que foi morrer no interior do vidro plástico transparente.
Procurava um nome, um nome feminino, mas no mesmo ponto onde a linha tinha morrido, sentiu extinguir-se também a esperança e a emoção que, apenas à instantes o tinham atingido de forma avassaladora. No fundo iluminado do vidro de plástico, somente um número - um número anónimo - igual a tantos outros números anónimos, sem rosto, sem voz, sem alma, só um número desconhecido. Não era ela!
O telemóvel, desesperado, continuava a sua modesta e inútil tarefa de captar a sua atenção, todo ele mexia. Mas os olhos, já revirados, foram ao encontro da luz ténue do final da tarde que transpirava da janela nas suas costas.
A cadeira girava sobre o eixo que a equilibrava sentada. Naquele momento de desespero, desejou que aquela base estável de descanso o engolisse, como se de areias movediças se tratasse, as mesmas que já tinha sentido momentos antes, mas agora estivessem por fim a cumprir a promessa de guardar no seu interior a sua angústia, uma mágoa que não desejava a ninguém, a dor de saber que não somos bem-vindos.
Com os olhos a semear vida, no chão que fugia a seu pés, pousou o telemóvel em cima da secretária e fitou a sala vazia à sua volta. Era a dura realidade da sua vida, uma vida cheia de vazios, de formas, cores e tamanhos diferentes e que se vão encaixando uns nos outros até preencherem por completo uma vida, para no fim darem lugar a outro vazio e a outra vida.
Sem pressas começou a recordar os momentos que tinham passado juntos, pequenos fragmentos de um vazio maior que sempre sentiu repletos de sentimentos, sorrisos, risos, beijos e alegria. Gostava de recordar. Fazia um esforço para lembrar todos os momentos da sua vida, mesmo os maus. Tentava evitar que o tempo, aquela criação imperfeita do homem transformasse aquilo que deveria ser sempre presente em passado histórico, aquele de que apenas os livros são memória e testemunha.
Com os braços apoiados na secretária e a mãos cruzadas uma sobre a outra, começou a sentir-lhe o cheiro, uma fragrância de mulher. Percorreu-lhe com os dedos a face, tocou-lhe levemente os lábios e acariciou-lhe o cabelo. Dos seus olhos bebeu a luz, uma luz intensa, mas ao mesmo tempo, carinhosamente suave e doce.
Conjuntamente e incrédulo sentiu-se invadir por um sentimento de dúvida e perplexidade que ia crescendo em direcção a uma raiva contida. Uma raiva que inicialmente dirigiu para ela, ela que não tinha querido falar com ele, mas afinal já não falavam há..., há... tanto tempo.
Depois sentiu a raiva mudar de direcção e dirigir-se a ele Ele que tinha deixado que a sua vida se enchesse de vazios sem nunca o ter combatido com a coragem, a bravura e a força que sempre tinha demonstrado possuir para outras batalhas. Talvez fosse esse mesmo o problema, aquela guerra, uma guerra que era só sua, onde cada batalha era travada em solidão… ele contra ele. E contra ele pouco ou nada podia fazer!
Prestes a rebentar ouviu um plim, plim, sonoro que ganhou vida no telemóvel solitário e abandonado.
O anónimo tinha deixado uma mensagem.- pensou! Não interessa.
Esteve mais uns instantes a aplacar a ira do outro ele e depois a curiosidade chamou por ele, queria saber quem era o anónimo.
Resgatou o telemóvel do seu cativeiro de solidão e observou a mensagem inscrita a letras negras:
"Tem uma mensagem nova, deseja ler?"
Sem pensar pressionou o OK, obtendo então a mensagem. Não era o anónimo, esta tinha um rosto, uma voz, uma alma, um nome de mulher. O dela.
Por fim leu:
"A areia espera ansiosa pela marcas que seguem paralelas. Liga-me"
Sentiu que a embarcação tão maltratada pelo fustigar constante de um mar tumultuoso de sentimentos tinha sido atingida pela luz do farol.
Poderia agora, em segurança rumar a um porto seguro.
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