Naufrágio
Dormia tranquilo, quando subitamente foi despertado por um ribombar medonho. Aquele ruído entranhou-se nas fendas do velho farol, intimando com a estrutura com tal intensidade que até mais pequenas moléculas tremeram nas suas ligações atómicas.
Saltou da cama e com um passo acelerado, enquanto ia enfiando as peças de roupa que apanhara em monte do topo de uma cadeira, subiu as escadas encaracoladinhas do farol de duas em duas. No cimo, ofegante, abriu o alçapão que dava acesso à estufa que protegia a Luz do Farol.
Não percebia bem se era dia ou noite, parecia dia, mas também podia ser noite. Grossas nuvens tenebrosas, lúgubres, carregadas de toneladas de água que se despenhava em grossas cataratas sobre o mar e o farol, cobriam todo o céu.
O mar, esse, também se transformara, estava agora sombrio, agitado, parecia desconfortável naquela piscina à qual o tinham confinado, desejava transbordar, dar largas ao seu instinto destruidor. Perguntava-se onde estava o azul, a placidez com que normalmente brindava os banhistas naquele mês de verão. Algo o tinha irritado, algo muito intenso.
Lembrou o manual de procedimentos, Capítulo 3, Secção 21, Paragrafo 12: "em dias de manifesta escuridão, ou em que o estado do mar represente um perigo real para a navegação, manter o farol aceso até alteração das condições".
Tinha de manter o farol aceso durante esse dia, ou seria noite? Não interessava, o que importava é que as condições exigiam a manutenção da Luz do Farol.
A cascata de água que se esborrachava contra a superfície vidrada da redoma que protegia a alma do farol, teimava em não abrandar, quase impedia a visão do mar. O vento assobiava entusiasmado com aquele cenário e com a possibilidade de vir a participar num evento de grande dor e destruição.
Deixou que o seu olhar atravessasse o vidro, deambulasse por entre os grossos jorros de água. Ao longe pareceu avistar uma embarcação em perigo. Esforçou a vista e conseguiu uma débil confirmação, logo questionada por uma enorme vaga que procurava atingir o céu, o sonho de também ela voar como as nuvens. Voltou a tentar e mais uma vez viu piscar uma delicada luzinha por entre as colossais e pavorosas vagas.
Baixou-se e apanhou os binóculos. Com eles deixou os seus olhos passearem por entre as gigantescas ondas à procura da embarcação. Por fim foi recompensado. Lá estava ela, em apuros, em luta por se manter à tona, mas sempre com a proa bem erguida em sinal de perseverança e orgulho na sua alma marinheira.
Ajustou os binóculos e tentou ver o nome da embarcação. Na subida acentuada de uma onda onde esta repousava, já imóvel, conseguiu ler-lhe o nome: "Espelho Mágico".
- Que faria aquela embarcação ali? - perguntou-se.
- Porque estaria ela ali num dia daqueles?
Certamente iria afundar-se, apesar da sua envergadura e da experiência acumulada, sentia que o fim estava perto.
Sem pensar, parou o movimento rotativo, sem destino, da luz do farol e colocou a embarcação sob o foco principal de luz. Então começou a transmitir uma mensagem de força e incentivo, composta por luzinhas curtas e luzinhas longas com umas pausas pelo meio, mensagem que qualquer verdadeiro navegante compreenderia:
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Porque o importante mesmo, é nunca desistir.
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