26 de agosto de 2005

Farol da Vida (Capítulo 6)

Para Joaquim aquela manhã era igual a tantas outras. As pedras brancas e pretas da calçada tipicamente portuguesa, que conhecia de cor, marcavam um trilho já familiar. Caminhava e pensava que, se algum dia se tivesse lembrado de lhes dar um nome, certamente que agora seria capaz de as chamar uma a uma pelo nome próprio, tantas vezes se tinham cruzado. Aquele era um pensamento que jamais poderia partilhar com ninguém. Que pensariam dele se confessasse que tinha dado nomes às pedras da calçada. Que absurdo! Diriam que o velho Joaquim estava a ficar senil, ou que estava transtornado. Mas porque motivo não poderia ele dar nomes às pedras da calçada? Os escultores não dão nome às estátuas? Alguém pensa que estão transtornados ou senis quando dão um nome a um bloco de mármore com formas, ou a pedaços de cimento pintados às cores? Claro que não!

De qualquer forma, agora seria tarde de mais para começar. Sentia que não lhe restavam anos de vida suficientes para conseguir dar um nome a cada uma daquelas pedras que vezes sem conta calcorreara na companhia da sua amada, aquela que a escuridão, um dia, lhe levara deixando uma sombra permanente sobre os seus dias. Para além disso a sua memória decidira, agora depois de velho, começar a brincar ao gato e ao rato e por muito que se esforçasse no seu papel de gato, aquele rato parecia extremamente hábil no jogo das escondidas.

Mais uns metros e as elegantes pedras da calçada portuguesa deram lugar a toscos paralelos de granito. A caminhada tornava-se a cada passo mais dura, começava a subida em direcção ao farol. Sabia que mais à frente também estes iriam ser substituídos por uma caminho de terra e esse sim o levaria até ao farol.

A manhã estava suavemente fria, tal como seria de esperar de um dia de final de verão. O céu imensamente azul abria os braços ao sol que, sem se fazer rogado, tratava de tornar mais amena e convidativa aquela jornada. Joaquim seguia sempre à beira mar. A sua atenção repartia-se entre o caminho grosseiramente empedrado e o mar. Ele, o mar, estava particularmente calmo naquela manhã, parecia quase imóvel à distância. Por momentos imaginou que até seria possível caminhar sobre um mar assim tão calmo. Joaquim, fruto dos seus longos anos no farol, já lhe conhecia as fúrias e a sua competência destrutiva. Recordava ainda o naufrágio do cargueiro Nigeriano, River Gurara em 1989.

A caminhada chegava finalmente ao fim. Avistava já o farol e a casa que habitara anos antes. Sentia sempre uma nostalgia e uma dor angustiante sempre que avistava a casa. Vê-la agora a fitá-lo com aqueles olhos negros e fechados, outrora bem abertos e claros, onde esvoaçavam delicadas cortinas de linho e renda, despertava o oceano que existia no seu interior e que por momentos parecia querer rebentar em fúria e abandonar o seu corpo em ondas de choro. Este era o motivo porque agora, sempre que caminhava em direcção ao farol, procurava não enfrentar o olhar de profunda tristeza e abandono que se desprendia das janelas da casa do farol.

Chegado junto à porta, introduziu e rodou a chave. Ao entrar sentiu que o oceano que momentos antes estava capaz de rebentar numa violenta fúria se acalmava e parecia agora mais dócil que um cordeirinho. Lentamente verificou os comandos do sistema de emergência situados na base do farol para depois partir para a subida dos trinta e dois metros de escada encaracolada que conduzia ao cimo da torre. Ao abrir a porta do varandim notou como a brisa marítima agitava os seus sentimentos mais profundos. Naquele momento sentiu uma enorme paz interior, comparável à serenidade que o mar espelhava nesse dia. Ao apreciar aquela mansidão e o conjunto de pequenos barcos de recreio que pareciam ancorados no horizonte, veio-lhe novamente à memória a recordação do naufrágio do River Gurara. Sabia que as visitas aos destroços do navio constituíam agora um importante pólo de atracção para turistas entusiastas do mergulho desportivo. Possivelmente seria esse mesmo o motivo porque estavam ali aqueles barcos, imóveis.

Mas ele nunca esqueceria aquela noite de 25 para 26 de Fevereiro de 1989. Passavam alguns minutos das 23:00 horas, quando, no alto do farol, se apercebeu das luzes de um navio no horizonte. Apesar da intempérie que se fazia sentir, com ventos cujas rajadas chegaram a atingir os 100 km/h - como soube depois - percebeu que o barco estava demasiado próximo da costa, não teve dúvidas que algo não estava bem e era necessário dar o alerta. Na sua memória ficou gravada a forma como o mar com vagas entre os 6 e os 10 metros, atiçadas por um vento vigoroso parecia brincar com aquele monstro de 175 metros e muitas toneladas, da mesma forma como uma foca faz malabarismos com uma bola na ponta do nariz. Essa era imagem que guardara daquele trágico acidente.

Joaquim apressou-se a telefonar para a capitania avisando a marinha da situação, mas eles já tinham recebido um pedido de auxílio do navio. Recebeu a indicação que a fragata “Comt. Hermenegildo Capelo” já tinha recebido ordens para prestar ajuda ao River Gurara.

Do alto do farol, Joaquim manteve a sua posição vigilante. Cerca das 2:30 viu aproximar-se a fragata da marinha. Esta procurava, a custo, abrir caminho entre as gigantescas vagas, balouçando como se de um carrossel se tratasse, com a fragata a subir e a descer aquele mar enfurecido. Era notório que o River Gurara perdia aquela batalha com o mar que o empurrava lenta, mas determinadamente, em direcção às rochas. A colisão era inevitável. Algum tempo depois o mar cumpriu a sua promessa e atirou violentamente com o navio de encontro aos rochedos. O choque provocou um gemido ensurdecedor que se propagou na noite como um agonizante grito de dor, mas foi rapidamente abafado pelo troar das vagas contra os penhascos. Depois do embate o navio rumou para sul, para o local onde o mar, naquela parte da costa, concentrava as suas energias destrutivas. Já era manhã quando o mar finalmente engoliu o que restava do River Gurara, resguardando o legado da desventurada sorte daquele navio no interior do seu ventre, a 28 longos metros de distância da curiosidade humana sempre sedenta de ver o resultado de qualquer catástrofe. Com o River Gurara tinham partido cinco vidas, contudo, graças à preciosa e valorosa e abnegada intervenção da tripulação da fragata “Comt. Hermenegildo Capelo” fora possível salvar 48 tripulantes do navio. Era assim aquele mar, temperamental, às vês manso e às vezes furioso.

Na aldeia, Filipe, o carteiro, dirigia-se para casa de Joaquim. Hoje tinha uma entrega especial: uma carta registada com aviso de recepção do Ministério do Mar. Chegado à porta bateu, mas não obteve resposta. D.ª Rosa, sempre muito atenta e vigilante, prontamente de dispôs a informar Filipe que Joaquim havia saído. Não tinha a certeza (na verdade nunca tinha certeza do paradeiro dos vizinhos, mas acertava quase sempre), mas pareceu-lhe que ele se dirigira na direcção ao farol, disse.

No cimo do farol, com os braços apoiados no resguardo do varandim, Joaquim apreciava a calma manhã. De repente pareceu-lhe ouvir chamar por si. Sorriu enquanto pensou que tinha sido uma ilusão, mas não deixava de ser engraçado se o mar soubesse o seu nome. Chamaram outra vez e então desconfiou. Baixou o olhar para a base do farol e deparou com Filipe com as mãos arqueados em torno da boca a gritar o seu nome. Nesse instante sentiu um aperto no peito. Que faria Filipe ali? Ele sempre lhe deixava o correio na vila. O povo dizia sempre que as más notícias correm mais depressa, isso era precisamente o que temia naquele instante. Filipe deveria ter notícias para ele e certamente, para estas irem ao seu encontro, seriam más notícias. Entrou na torre do farol e de forma atabalhoada desceu vertiginosamente, tanto quanto os seus 70 anos permitiam, as escadas. No fundo Filipe recebeu-o com um enorme sorriso, tal como era seu apanágio.

- Então Sr. Joaquim, já por aqui? Hoje tenho algo especial para si.

- Olá Filipe. Não devem ser boas notícias para virem com tanta determinação ao meu encontro.

- Olhe, isso é que não sei, como sabe não tenho o hábito de ler o correio alheio - disse Filipe com um ar trocista.

- Bem sei meu rapaz… bem sei, mas esta pressão que senti no peito quanto senti que chamavas por mim… cheira-me a que nada de bom vem por aí.

- Talvez não, é simplesmente uma carta do ministério do mar, como tantas outras que já recebeu.

- Então porque motivo vens entregar-ma aqui?

- Bem, é que esta vem registada com aviso de recepção!

- Estás a ver, essa não é igual às outras. Deixa ver o registo, onde assino?

Assinado o registo Joaquim permaneceu expectante, observando a carta. Filipe sentiu que aquele era o momento de deixar o bom Joaquim a sós e despediu-se.

- Bom senhor Joaquim, vai ver que isso não é nada de importante, amanhã me dirá. Talvez quem sabe se amanhã não tenho outra para si. Até amanhã, que se faz tarde e tenho ainda muita correspondência para distribuir – mentiu Filipe, pois tinha distribuído a quase totalidade da correspondência desse dia, mas deveria seguir a voz da sua intuição que lhe dizia que Joaquim queria ficar sozinho.

Filipe afastou-se e Joaquim rumou ao interior do farol com os olhos pregados no envelope do ministério. Pausadamente sentou-se no primeiro degrau da longa escadaria e ali ficou a virar a carta. O medo da mensagem contida naquela missiva mantinha os dedos afastados da abertura fácil. “Abertura fácil”, pensou. O problema não está na dificuldade da abertura, mas sim naquilo que pode saltar de dentro do envelope. Tanto pode sair um mar de palavras afável, como pode sair um mar enfurecido capaz de o lançar num desespero, numa luta fútil até à inevitável colisão com as rochas da falésia e ao posterior naufrágio, tal qual acontecera com o River Gurara.

Finalmente num arrojo de coragem, Joaquim puxou por uma das pontas do sistema de abertura fácil e abriu o envelope. Do seu interior um mar de palavras serenas e delicadas e polidas abriram as portas a uma tempestade que o atingiu de forma brutal. Naquele momento sentiu-se impotente para segurar o oceano de lágrima que tantas vezes amarrara no seu interior e começou a chorar profusamente, como um criança, uma criança com mais de 70 anos. Chorando e soluçando levantou-se e começou a subir a escadaria do farol. A cada passo sentia a escada fugir-lhe debaixo dos pés, cada degrau parecia o último antes do abismo, mas mesmo assim continuou a caminhar como se no cimo do farol estivesse o seu destino, um destino que sempre esperara, mas para o qual nunca estivera verdadeiramente preparado.

Mas como em tudo na vida, há sempre um momento em que somos obrigados a enfrentar os nossos maiores medos e esse momento para Joaquim tinha chegado.

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