O Buraco da agulha
Ela olhou-o com um misto de ternura e desilusão. Debruçou-se um pouco e disparou delicadamente, sem piedade:
- O teu Amor por mim cabe no buraco de um agulha.
Foi um disparo seco. A arma parecia ter um silenciador, pois apenas se escutou um ligeiro sopro zumbido. Em nenhuma das mesas contíguas se sentiu mais do que o passar de uma breve brisa sem aroma.
Ele ficou imóvel. Mudo. Por fim, esboçou um sorriso compreensivo, profundamente carinhoso e disse:
-Tens razão. Nem vou contestar.
Em seguida, empurrou a cadeira para se levantar e debruçando-se sobre a mesa levou a mão à face esquerda dela enquanto depositava um beijo na face direita.
Em breves segundos desapareceu pela porta. Ela permaneceu ali sentada. Tinha sido o fim. Pressentia-o. Mas ao mesmo tempo, aquele beijo doce de despedida parecia conter uma promessa que a confundia. Olhou através do colossal vidro da janela em busca dele. Assaltou-a a vontade de correr atrás dele. Mas não havia sinal dele.
Pediu a conta e descobriu que ele havia pago. Apenas lhe restava ir refugiar-se em casa. Ao abrir a porta sentiu a casa mais vazia do que era normal. Demorou um pouco a perceber, mas por fim compreendeu que era ela que estava mais vazia. A casa, estava tão preenchida como quando tinha saído essa manhã. Trocou a roupa e deitou-se no sofá petiscando umas coisas estranhas com muito sal e gordura. Mas hoje precisava delas. Não sabia se era para se castigar ou para se consolar. Não interessava. Ligou a televisão. O ruído ajudava a preencher o espaço. No rosto sentia intermitentemente um leve rubor na bochecha direita. Algo firme tinha ficado pegado na pele.
Estava absorta na descoberta da origem daquela sensação tão agradavelmente surpreendente quando o toque da campainha a despertou. Saltou sobressaltada e dirigiu-se à porta. Pelo visor do intercomunicador viu quem era. Abriu a porta e ficou a aguardar. Momentos depois ali estava ele, à sua frente. Sorridente.
Ele pedia-lhe para estender a mão. Ela assim fez e ele depositou com cuidado uma agulha na palma da sua mão. Ela expressou espanto e perguntou:
- Para que é esta agulha?
- Não imaginas? Convida-me a entrar e eu explico-te.
Ela afastou-se e ainda perplexa agitou o braço esboçando um sinal de convite. Ele transpôs a soleira da porta e seguiu-a até à sala. Sentaram-se os dois no sofá em silêncio. Comunicavam com o olhar mas não se compreendiam. Por fim ele tirou do bolso um enorme novelo de linha para estupefação dela.
- Vamos coser alguma coisa? Perguntou ela.
- Depende – disse ele. Onde está a agulha que ainda agora te dei?
Ele abriu a mão e expôs a agulha, segurando-a na vertical entre o polegar e o indicador, com cuidado. Ele pegou num ponta do gigantesco novelo e fez passar uma ponta pelo buraco da agulha. Em seguida disse-lhe.
- Disseste-me que o meu Amor por ti cabia no buraco de uma agulha. Concordei e disse-te que tinhas razão. Estou aqui para te demonstrar que, apesar de anuir com a tua opinião, não estavas de todo certa, e que até mesmo pelo buraco mais pequeno é possível passar muito mais do que por vezes conseguimos imaginar. Temos um novelo inteiro, muito metros de Amor para transpor por este buraquinho exíguo, desde que permitamos que o buraco permaneça desimpedido por muito tempo... pois não sei ao certo quanto tempo vai ser necessário para te o dar todo.