20 de setembro de 2004

A Casa da Lagoa (Parte II)

Aquele simples acto de inspiração foi suficiente para devolver João Miguel ao espaço e tempo que o rodeava, abandonando a recordação do encontro com o Sr. António e o doce sabor da sua primeira conquista, que agora se desvanecia lentamente na retina da sua memória.

À sua frente, sobre a mesa da esplanada, a torrada de grossas fatias de pão de forma caseiro e o galão ainda ligeiramente fumegante aguardavam o seu despertar, o acordar para a vida, para as obrigações e desafios diários que agora teria de enfrentar.

Olhando de frente para a banheira redonda, que pomposamente tinham apelidado de fonte luminosa, deitou a mão a um pedaço de pão generosamente barrado de manteiga, que acompanhou com um sorvo de leite com café. A amena manhã de Setembro, para um fim de verão demasiado morno, até talvez um pouco frio, estava admiravelmente agradável. O sol escondido pelo pano cru dos imponentes chapéus aquecia o ar fresco e sadio da manhã, enquanto um leve aroma que não conseguia identificar lhe invadia suavemente as narinas, adocicando-lhe a alma.

Olhou apressadamente para o relógio e verificou que estava um pouco atrasado. Sem hesitação tragou o resto do pequeno-almoço, pagou a conta com um cumprimento de braço no ar e seguiu a pé pela rua. Foi pequeno o passeio acelerado, apenas uns duzentos metros até à porta do seu local de trabalho. Logo que atravessou a porta, retirou da pasta que o acompanhava o uniforme que vestiu ali mesmo no hall. Já equipado a rigor foi atravessando energicamente as portas que atrás de si ficavam a balouçar, ainda frenéticas pela energia que as tinha atingido.

Pelo caminho encontrou Filomena, que parecia ter envelhecido dez anos desde a última vez que a vira há uma semana atrás, antes de ter entrado de férias. Filomena teria aproximadamente quarenta e cinco anos, algo baixa e magra, mas mesmo assim uma mulher atraente, muito por força de uma elegância natural e um irrepreensível bom gosto na hora de cinzelar a seus atributos inatos. O cabelo curto dava-lhe inclusive um certo ar juvenil que poderia trair mesmo um olhar mais experiente.

- Olá Filomena, estás com má cara, não me digas que estás doente – Disse João Miguel com um leve sorriso trocista.

- Pois, pois meu menino, uns lembram-se de ir de férias e os outros é que pagam as favas! Não imaginas o que tem isto tem sido, ainda não consegui um momento de descanso desde que te foste...

- Não me digas que agora me vais culpar de tudo? - disse ele interrompendo a conversa e espelhando no rosto a máscara de menino injustiçado.

- Claro que não, não sejas tonto, mas a verdade é que isto tem sido um inferno. Aqui onde me vês, já há quase 48 horas que não vou à cama, estou de rastos.

- Bem isso explica essa cara, mas deixa que já voltei e estou cheio de energia. Vou dar-te uma ajuda que estou a ver que precisas. Vai descansar um pouco que eu controlo a situação.

- Ó que alegria, chegou o Dr. João Miguel supremo defensor da médicas em apuros. Ai meu menino se eu não fosse casada, quem se atirava ao teu pescoço um dia destes era eu, mas para meu azar continuo profundamente apaixonada pelo meu marido...

- Para teu e meu, minha querida Dra. Filomena, pois como homem descomprometido e sensível nunca deixaria fugir uma flor como tu.

Trocaram dois beijos formalmente puros entre risos de amizade, para seguirem cada um o seu caminho, em direcções opostas, mas visivelmente coincidentes.


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