22 de outubro de 2004

Brincadeiras de Crianças

Era um dia como tantos outros. Não que os seus dias fossem monótonos, na verdade, cada dia tinha para ele um sabor diferente e singular. Isso era algo de que não se podia queixar na sua profissão, pois cada dia tinha sempre algo de novo e inesperado à sua espera.

Reflectiu sobre o assunto e viu que, talvez, todos os empregos fossem assim, embora muitas vezes a cegueira da monotonia que ataca silenciosa e sorrateiramente, nublava a vontade de olhar as diferenças existentes em cada dia, escravizando o pensamento a concentrar-se unicamente nas semelhanças com o dia, semana, mês ou ano, anos anteriores.

Acabara a manhã e fora almoçar. Todos estes pensamentos atravessavam a sua mente enquanto saboreava com especial gosto o mesmo prato que tantas vezes comera. Era curioso, quantas vezes tinha pedido aquela mesma ementa? Muitas, demasiadas - Pensou.

O seu paladar gritava, tanto quanto lhe permitia a comida que na sua boca ia libertando gostos e odores deliciosamente tonificantes, que não era hora de pensar, deveria dedicar aquele instante a apreciar o prazer de uma boa refeição com um toque caseiro, com que a Dª Cândida o aliciava para a extravagância de cometer o pecado de ingerir calorias suficientes para matar a fome de pelo menos duas vintenas de criança sub nutridas num qualquer país do terceiro mundo.

Sentiu uma imensa culpa subir-lhe pelo esófago e resfolgar na boca. Acabou de comer e aproveitou o sol soalheiro, para um passeio purificador da sua alma, alimentado pelo excesso de calorias ingeridas momentos antes.

Seguia pela avenida absorto em pensamento fúteis, contemplando as árvores que se despediam lentamente das folhas, que na hora da partida ficavam castanhas de tristeza por serem obrigadas a abandonar a protecção do seio materno. No chão, um tapete digno de um desfile de "haute couture", estendia-se sob os seus pés, convidando a um passeio noutro ambiente.

Deu por si junto a um jardim. Ainda nem tinha reparado como estava bonito depois de requalificação a que tinha sido submetido. Olhou para o relógio, que marcava a hora exacta para entrar e apreciar a renovação daquele local. Lembrava-o muitos anos antes, num estado de semi-abandono, de puro desleixo. Procurou um banco onde se sentar para, descansadamente, apreciar em câmara lenta os sons e movimentos dos novos e renovados habitantes que agora povoavam aquela aldeia.

Libertou o seu olhar que rapidamente desatou a correr pelo jardim, inspeccionando cada espaço, canto e recanto, fotografando cada flor, cada árvore e tropeçando aqui e além com algumas pessoas, que pela ruas do jardim abasteciam de calma e descanso as baterias que os mantinham vivos.

Por momentos assustou-se quando o seu olhar decidiu saltar sobre o enorme lago que, no meio do jardim, refrescava uma animada família de patos. Mas foi infundado o seu medo. Numa demonstração de força e vitalidade o seu olhar saltou sobre o lago com um único impulso indo aterrar junto de um grupo de crianças que ao longe, no outro lado brincavam às agarradas ou qualquer coisa parecida. Sentiu no seu olhar uma inveja benévola, uma vontade imensa de também entrar na brincadeira e correr. Há quantos anos não corria assim, despreocupado, como aquelas crianças?

Não sabia se ainda teria forças para acompanhar aquele ritmo, na verdade essa é uma característica invejável da juventude, a de possuir uma fonte inesgotável de energia, capaz de iluminar o mundo inteiro com uma só descarga.

No outro lado a correria continuava, agora com uma bola à mistura. Coitada da bola, socada, pontapeada e arremessada por tamanha quantidade de energia. Imerso nestes pensamentos, quase não dava pelo grito de alarme que o seu olhar lhe lançou do outro lado.

Uma criança acabara de cair ao chão. Ou outros rapidamente, numa atitude altruísta de socorro, juntaram-se em volta dela, que continuava estendida no chão. Sem pensar levantou-se e correu o mais depressa que pode ao encontro do seu olhar. Como um barco de corrida, atravessou vertiginosa e perigosamente o lago pela ponte de madeira que unia as duas margens e dirigiu-se sem demora para o grupo de criança que permanecia imóvel a contemplar o companheiro estendido sobre o chão multicolor, forrado de folhas secas.

Tentou afastar algumas crianças para ver o estado do acidentado, quando para seu espanto, encarou com um rosto docemente feminino, que teria certamente algo mais de trinta anos. Ao seu ar meio desorientado e embasbaco ela respondeu:

- Eu estou bem, não se preocupe. Eu bem tento ser criança outra vez e acompanha-los, mas a energia das crianças parece não ter fim…

Ele olhou para ela e com um sorriso meio tímido, meio envergonhado estendeu-lhe a mão dizendo:

- Pode ajudar-me a sentir-me também, criança outra vez?


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