O Encontro (Parte I)
Viu-a pela primeira vez numa húmida manhã de Outono.
Tinha saído de casa cedo. A chuva miudinha molhava seriamente aqueles que se atreviam a desconfiar da sua capacidade de encharcar desprevenidos ou simplesmente descuidados.
Percorria, sem rumo ruas da cidade que não se lembrava de ter alguma vez percorrido. Procurava uma inspiração, algo que lhe acalentasse a alma e lhe iluminasse os melancólicos, sombrios e húmidos dias de Outono. Sentia falta do sol, das esplanadas, dos longos passeios nocturnos, da vida que parecia florescer a cada esquina nas brincadeiras das crianças. Agora, o frio e a chuva tinham tomado conta dos canteiros, das esplanadas vazias e esquinas transformadas em desertos de silêncio.
Apurou o ouvido e pareceu-lhe ouvir coaxar. Parou. Imediatamente o som pareceu dissolver-se na chuva, que tinha, naquele instante, aumentado de intensidade. Afinou mais uma vez o ouvido, mas apenas conseguiu distinguir um leve som, característico da balbúrdia da cidade que se espreguiça lentamente.
Resignado com a perda de mais um sinal de verão, deu mais um passo e ouviu-o novamente. Imóvel olhou para o chão a seus pés e lentamente fez um movimento de flexão do sapato que logo coaxou. Afinal era ele quem coaxava. Deu uma gargalhada ao perceber como a sua imaginação o tinha traído inocentemente, mas eram aquelas coisas simples, encontros fortuitos com pessoas, situações ou simples sinais, que tantas vezes o transportara para outras realidades.
Rindo da sua própria tolice, seguiu pela rua coaxando até que do outro lado da rua um encontro fortuito dos seus olhos com letreiro grande e antigo, fez a sua mente voar em direcção ao passado. "Leitaria Nacional", dizia o letreiro. À distância e pelo vidro, aquela leitaria parecia saída do século passado. O mobiliário e a decoração respeitavam os códigos de uma época que não era a sua, mas que aprendera a distinguir pelas palavras escritas, pelo testemunho de outros frequentadores daqueles refúgios. Sentiu curiosidade em entrar e deixar que o aroma do passado lhe invadisse a imaginação, deixar-se impregnar pelo espírito de todos aqueles que antes dele, ali tinham deixado a sua marca, ainda que invisível.
Atravessou a rua, pisando as riscas alternadas brancas e pretas da passadeira que alguém, ali tinha estendido. Aproximou-se da enorme montra e verificou que havia uma mesa livre, mesmo ali, junto ao vidro. Gostava particularmente de se sentar junto ao vidro, De ali podia observar como as pessoas corriam para nenhum lugar, ao mesmo tempo que a chuva cada vez mais intensa e fria, lhes ia torrando a paciência. Era uma espécie de janela aberta para um aquário onde os peixes se movem, aparentemente sem sentido, pelo menos para quem olha do lado de fora. Por vezes era assaltado pela dúvida de saber de que lado estava ele, se no interior do aquário ou no exterior. Mas também pouco interessava, afinal o interior apenas o é para quem pensa estar dentro, ao mesmo tempo que o exterior apenas o é para quem pensa estar fora. Aquela era uma dúvida filosófica e naquela manhã não se sentia tentado a filosofar.
Procurou no interior abrigo daqueles pensamentos e instalou-se na mesa junto à montra. Com a manga do casaco abriu um buraco na humidade do Outono que se instalara no interior do vidro, aproveitando também ele, o calor da vida. Pela janela aberta na névoa que cobria o vidro reparou na livraria no outro lado da rua. Também ela parecia saída de outra realidade. O seu aspecto rústico e até o nome – "Resende Livreiros" - remetiam para outro espaço e outro tempo. Tinha um ar British, clássico, talvez até antiquado, mas elegante e sóbrio, característica que lhe era conferida pela madeira com que tinha sido maquilhada a montra.
E foi aí, junto à montra da livraria, que a viu pela primeira vez, numa húmida manhã de Outono.
0 Comentários:
Enviar um comentário
<< Home