25 de outubro de 2004

O Segredo do Faroleiro

Esta história, como terão oportunidade de ver, foi ilustrada como várias imagens, todas elas soberbas, de um local que nunca tive a oportunidade de visitar, mas que me encantou, quando o vi pelo olhos da Riacho, a quem desde já agradeço a amabilidade na cedência das maravilhosas e inspiradoras fotos.


O Verão terminara. As nuvens escuras como a noite ameaçavam abater-se sobre o farol. O vento frio que atacava em fúria os vidros e a praia deserta, ao longe, não deixavam espaço para a imaginação: o Verão morria às mãos implacáveis do Outono. A luminosa face do mar mudava de cor, dia após dia, cada vez mais soturna e fria, moldada pelas correntes frias de outras latitudes.

Chegara a hora de partir. Todos os anos por esta altura aproveitava para gozar as merecidas férias. Alguns amigos já lhe tinham dito que não compreendiam a escolha daquela época para as suas férias, mas eram motivos que só ele compreendia e não lhes queria confessar.

Aquela recusa em partilhar a motivação da sua preferência tinham já sido alvo de muito falatório e especulação. Momentos houve em que teve vontade de gritar bem alto “Gosto de ir de férias nesta época porque…”, mas depois começou a encontrar naquela aura de mistério uma certa graciosidade e deixou-se seduzir pelo encanto da curiosidade que despertava nos outros, como alguém dissera: o silêncio é de ouro. Agora sabia que além de ouro, poderia também ser misterioso, cómico, curioso e até mesmo cruel.

Desceu as encaracoladas escadas do farol, enfiou as últimas peças de roupa na mala. Correu muito vagarosamente para a porta. Fotografou com o olhar o lar que agora abandonava e fechou a porta. Esta gemeu de dor quando a chave se retorceu no interior da fechadura. O mar exalava um hálito frio e húmido varria o areal. As areias soltavam-se para os seus braços e vogavam soltas, indo espetar-se no seu impermeável, como minúsculos punhais atirados por um pouco talentoso artista de circo.

Lançou um último olhar para o seu companheiro de Verão, agora enfurecido, transtornado por uma loucura, que sabia ser, apenas a prazo.

A viagem, longa, levava-o a outras paragens. Não ia ao encontro do Verão noutras paragens, como muitos inconformados com o seu silêncio alvitravam, antes pelo contrário, ia ao encontro do Outono, de um Outono frio que era a extensão do seu Verão.

O seu corpo voava em direcção ao refúgio, onde cumpriria mais uma vez a sua missão, quando a sua imaginação se cruzou com um bando de patos que se dirigia ao sul, à procura do conforto do sol. Enquanto eles se afastavam do seu pensamento, sentia o seu corpo aproximar-se da terra. Estava sem dúvida a chegar ao seu destino, o avião iniciara a descida em direcção a terra firme, enquanto o bando de patos abanava ritmadamente as asas, parecendo repetir vezes sem conta um terno adeus.

Com o pensamento já em terra firme, correu como uma criança desesperada em direcção ao rent-a-car. Freneticamente assinou o contrato e saiu sem demoras. Na cidade as pessoas corriam em várias direcções alheias ao misterioso faroleiro. Para elas, ele era mais uma pessoa que conduzia um carro. A aura de mistério que o envolvia e o segredo da sua viagem tinham desaparecido, esvoaçado com os patos em direcção ao sul. Para aquelas pessoas ele ara apenas mais um alguém de nome ninguém, com alegrias, tristezas, dores, encantos e desencantos, mais um número de segurança social, um simples número de bilhete de identidade. A seu lado as pessoas corriam, alheios ao invulgar segredo que o tinha conduzido até àquela terra de gente estranha, mas ao mesmo tempo, tão igual a si próprio.

Por fim abandonou a cidade. A paisagem paralela à sua caminhada corria agora à mesma velocidade do carro, pintada a cores mais quentes e comparáveis às do Verão que lhe tinha fugido, amedrontado pelo Outono. Ao fundo o sinal, amarelo, da cor do sol quente de verão, avisava que estava a chegar ao seu refúgio.

Salpicando a estrada, gotas de sangue de um Verão moribundo, desfaziam qualquer engano: ele estava ali. Era ali sem dúvida que ele, o Verão, se refugiara. Sabia que não tinha desistido, apenas se tinha retirado para se recompor e ganhar forças para uma nova investida no próximo ano. Tinha a certeza que como ele, o Verão, nunca desistia.



Percorreu com impaciência os últimos metros que o separavam da casa que ocupava religiosamente todos os anos, naquele recanto perdido do bulício da sociedade dita civilizada. A seu lado os sinais da sua presença multiplicavam-se num misto de cores quentes, sarapintadas aqui e além pelo verde esperançoso dos seus olhos.



Era o reflexo da tristeza de partir pintada a vermelho sangue, medicada por tons de verde-mar, para lhe recordar o lar onde haveria de voltar. Observou como aos seus pés duas crianças brincavam, a sua alegria e indiferença ao penar do Verão que agora se extinguia. Aquele quadro recordou-lhe como por vezes as pessoas conseguem ser insensíveis ao sofrimento daqueles que a seu lado se extinguem sem uma lágrima, num sofrimento mudo e escondido. Aquele quadro recordava-lhe os motivos que o levavam ali todos os anos e que originara aquele clima de mistério que se desenhava no pensamento dos seus amigos, quando todos os anos anunciava a sua partida. Se eles soubessem, se ao menos imaginassem…

Mas a inocência daquelas crianças não lhes permitia ainda, felizmente, compreender todo o sofrimento e miséria que a seu lado vai crescendo, às mãos de uma sociedade cada vez parecida com o Inverno que o Outono agora anunciava. Teve um desejo utópico, desejou até, que nunca tivessem necessidade de conhecer o infortúnio da desgraça e a mesquinhez que sempre a acompanha.

Esvoaçou o olhar um pouco mais para a frente, onde podia agora vislumbrar já o seu abrigo de Inverno.



Discretamente abrigado nos braços ainda soalheiros do verão, sensualmente vestidos de amarelo, laranja e vermelho, sobressaía o branco puro da casa. Ao pés do abrigo via como o rio tinha já engrossado, com as lágrimas de solidão do Verão, que inconsolável deixava escapar de pesadas e escuras nuvens que lhe turvavam a vista, incomensuravelmente inchados pela tristeza de ter abandonar os corpos semi-nus e a roupas leves com que gostava de presentear todos aqueles que com ele brincavam, partilhando sentimentos cálidos, por vezes, até tórridos que noutro momentos não tinham espaço para nascer e crescer. Aquelas sensações morriam agora, ali, sufocadas sob o peso de grossas camisolas de lã; secas dentro de roupas impermeáveis à liberdade de comunicar sinais de paixão; presas em casulos de pedra, amedrontadas pela fúria do manto cinzento escuro que cobria o inspirador azul celeste.

Parou o carro e percorreu lentamente o chão coberto dos sinais da vida que agora se extinguia. O sangue multicolor do verão espalhava-se sobre o tapete verde da esperança e já o cobria quase na totalidade. Pelo matiz das cores verificou que o fim se aproximava mais rapidamente que noutros anos. O tom castanho profundo de alguns resquícios da hibernação anunciada denotava que já ali estavam há algum tempo, que o doloroso processo de sacrifício do Verão já tinha começado há muito.




Um pouco mais à frente ajoelhou-se junto ao rio de lágrimas do Verão e ficou a observar como este levava para longe os vestígios do padecimento. Pensou como era curioso aquele fenómeno. Lavava-se o sangue e acabava o sofrimento, pelo menos aos olhos daqueles que não padecem da dor ou não sentem a dor alheia como sua.

Era verdadeiramente admirável aquele Verão e o seu altruísmo. A forma como ajudava a alimentar o esquecimento da sua própria dor, que apagava da memória daqueles com quem tinha convivido durante longos meses partilhando a sua imagem doce e sensualmente quente. Chamava ainda o vento para lentamente arrancar de cima se si o peso, agora morto, do sangue que alimentou a frescura de tantas pessoas, que à sua sombra retemperaram, também elas, as forças para enfrentar o seu destino.



Continuou a pé até à base da escadaria que conduzia à casa.

Lá estava ela, bem no alto, a casa na qual passaria os próximos momentos cumprindo escrupulosamente a missão que lhe tinham confiado muitos anos antes. Tal como o mistério da sua partida todos os anos matraqueava a cabeça dos seus amigos, também uma luzinha de cor indefinida continuava a piscar na sua cabeça, após todos estes anos.



Na verdade nunca tinha compreendido inteiramente a sua escolha para aquele trabalho, não possuía nenhuma qualificação ímpar, nem nunca tinha demonstrado uma aptidão singular, um dom especial, mas tinha sido ele o escolhido. Talvez não houvesse uma única explicação, nem sabia bem porque teria de haver uma explicação, afinal na sua experiência no farol tinha aprendido que há coisas que não se explicam e quanto mais se tenta inventar explicações, maiores as dúvidas e cruzamentos de contornos incertos e por vezes perigosos.

Bem mas ali estava ele para cumprir a sua missão. Afastou da sua mente as divagações pseudo-filosóficas e concentrou-se em subir rapidamente as escadas. No cimo, colocou a mão no bolso direito das calças, de onde extraiu um molho de chaves ordenadamente acondicionado num estojo de pele. Procurou a mesma chave com que guardara a sua vida no farol e abriu a porta de uma nova vida, ali, longe do seu farol.

Lá dentro tudo continuava igual. Ali parecia que o tempo tinha ficado congelado pelo frio do Inverno anterior. Até o pó continuava suspenso no ar, esperando que a porta se abrisse para se poder depositar sobre a parca mobília que conferia o aspecto de um lar àquele espaço. Ao fundo encarou com a fotografia do seu farol que ali tinha pendurado há muitos anos, a quando da sua primeira viagem. A cada um dos lados, dois quadros de nós de marinheiro recordavam-lhe a memória de dois bons amigos que tinham partido há muitos anos, junto com o Verão, mas que ao contrário deste nunca tinham voltado.

Pousou a singela bagagem no chão, voltou as costas ao pó que corria agora, alegremente, entre os móveis, alimentado pela brisa fresca que entrava pela porta aberta ao mundo.

Saiu em direcção ao local de onde deveria cumprir a sua missão.



O seu posto de vigia, que na verdade era mais de um, era uma estrutura construída pelos seus antecessores na função. Uma estrutura em pedra com várias janelas que permitiam contemplar o mundo à sua volta.

Ligeiramente protegido da crueldade do Inverno que sempre sorrateiramente se aproxima, podia de ali ver com incomparável clareza o Verão que à sua volta se contorcia em dores e sofrimento, resistindo infrutiferamente aos avanços do Outono que o empurravam para o degredo, banindo-o da face daquela terra até daí a muitos meses.



Era sua missão assegurar que o Verão partia em paz com ele próprio e consola-lo na sua partida, dando-lhe ânimo para voltar mais quente e radioso no próximo ano. Tinha de proteger a sua partida de um Inverno desalmadamente frio e incomparavelmente sombrio. Era sua obrigação assegurar que essa sombra não seria permanente. Tinha de passar o Inverno a sanar as feridas abertas no Verão, para este renascer em pleno, no azul do céu com o despontar da primavera.

Era este o grande mistério que intrigava os seus amigos e conhecidos e cuja resposta queriam desesperadamente saber. Como lhe explicaria ele tão insólito e intimo segredo...

Que diriam eles se soubessem que ele era o Guardião do Verão?



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