25 de setembro de 2004

A Casa da Lagoa (Parte III)

Seguiu o seu caminho. O longo corredor com paredes pintadas a verde água lembrava-lhe sempre o verão e a cor das águas tropicais. Reflectia entretanto sobre as últimas palavras trocadas com Filomena. Já tinham alguns anos de convívio, mas nunca se sentira tentado a olhar para a mulher que se escondia por baixo da bata branca, mas hoje, reparara na Filomena mulher e não na Filomena médica.

A última fronteira de cor azul aproximava-se vertiginosamente e logo afastou os olhos da imaginação da figura da Dra. Filomena, sua colega. Aquela porta azul em cujo puxador pousava agora a mão era a última barreira que o separava da confusão do serviço de urgência. Aquele era um serviço que não era do seu agrado, afinal ele era internista, mas a falta crónica de pessoal médico aliada a outras condicionantes bem mais vazias, obrigavam-no a fazer ali serviço todas as semanas. Para seu azar tinha logo que retomar o serviço no dia em que lhe calhava a urgência, pensou ele enquanto a porta batia nas suas costa marcando de forma inequívoca o seu destino para as próximas horas.

Percorreu o corredor num passo sofrido, acenando para os diversos gabinetes e salas onde os colegas faziam atendimento. Cruzou-se com a enfermeira Manuela, que lhe deitou um olhar manifestamente brincalhão, enquanto lhe lançava um piropo:

- Sr. Dr. João, vem bem tostadinho, vejo que as férias lhe fizeram bem. Se não estivesse de serviço era capaz de o convidar para... um café.

Acompanhou estas palavras com uns risinhos, enquanto um olhar penetrante trespassou a sua bata, mas que para infelicidade dela esbarrou no pólo vermelho e nas calças azuis.

Era o segundo elogio em menos de cinco minutos. Um espanto apoderou-se do seu pensamento, que se passaria, estaria mesmo diferente? Estava incomodado. Talvez aquela conversa com o Sr. António e a lembrança daquele paraíso à beira da lagoa, que tinha esperança de partilhar com ela o tivessem modificado, mas notar-se-ia assim tanto?

Decidiu responder:

- Enfermeira Manuela, vejo que o trabalho também lhe tem feito bem, está mais elegante. Quanto ao amável convite terá de ficar em lista de espera, pois parece-me que tenho ali pacientes classificados com a cor vermelha.

Continuou em direcção ao gabinete onde esperava encontrar o Dr. Lourenço, quem se esperava que substituísse. Ao chegar à porta, viu que Lourenço atendia uma senhora. Parou e gesticulando tentou dizer-lhe que voltaria depois, mas Lourenço com um enorme, mais, com um descomunal sorriso não o deixou abalar. Colocando-se de pé foi dizendo:

- Caro Dr. João Miguel, estávamos mesmo a falar de si. Aqui a Sra. Dª Cândida estava a elogiar o talento médico do colega e perguntava se o colega não iria estar hoje, pois queria que o Dr. a consultasse.

João Miguel olhou com espanto para Dª Cândida Nem a tinha reconhecido quando chegou à porta. Agora percebia o gigantesco sorriso na cara de Lourenço.

Lembrava-se da primeira vez que tinha visto a Dª Cândida. Tinha sido ali, naquele mesmo gabinete, uns meses após o falecimento do marido. Senhora de uns bem conservados 60 e tal anos, tinha ficado muito transtornada com a morte do marido, tinha-se isolado e acabara no hospital pela mão da filha que não aceitava que a mãe tivesse decidido deixar de viver. Os seus dias resumiam-se aos passeios entre a sala onde deixava que a televisão lhe abrisse as portas de um mundo que agora não aceitava como seu e o quarto onde se refugiava do mundo que a televisão teimava em lhe impingir.

Claramente aquele não era um caso para ele, mas a hipertensão que lhe detectou já era, então para a acompanhar decidira coloca-la na sua lista de consultas externas. Após alguns meses notou que passara a ser um confidente da Dª Cândida. Esta procurava nas suas consultas uma companhia para conversar, pois aparentemente os filhos, demasiado absorvidos por sabe-se lá o quê, não tinham tempo para a ouvir e confortar na dor da solidão forçada.

Nessa altura deu instruções precisas à secretária para agendar a Dª Cândida sempre um último lugar, independentemente das vagas, por forma a não perturbar o normal funcionamento das consultas e assim, ela sempre poderia desabafar, afinal tudo o que pedia era tempo e alguém que a ouvisse.

Sem querer tinha-se afeiçoado àquela senhora que, com o dobro da sua idade, sentia por ele um certo instinto maternal, como ficou provado nas palavras com que o cumprimentou.

- Dr. João Miguel, o Dr. Lourenço estava-me a dizer que tinha ido de férias. Fez muito bem e espero que se tenha alimentado convenientemente, pois o Dr. estava magro, veja lá não adoeça, pois que vai ser dos seus doentes?

- Foram boas Dª Cândida. E não se preocupe que quando estiver mal, vou-lhe pedir para me fazer uma canjinha, daquelas que o seu Francisco tanto gostava.

- Eram a sua salvação Dr, João Miguel, sempre que se sentia fraco metia-o na cama com uma canjinha e no dia seguinte parecia outro homem.

Nisto, o Dr. Lourenço aproveitou para preparar a sua saída.

- Dª Cândida, agora que o Dr. João Miguel já chegou, vou deixar que ele a observe.

- Não se importa pois não Dr. Lourenço? Sabe, eu gosto muito do Sr. Dr., mas como já aqui está o Dr. João Miguel preferia...

- De modo algum Dª Cândida! – Disse o Dr. Lourenço ao mesmo tempo que piscava o olho ao Dr. João Miguel.

- Vai ter de nos dispensar apenas alguns minutos para que possa por o Dr. João ao corrente dos episódios de urgência pendentes, pois agora ele vai ter de os acompanhar.

Dito isto, o Dr. Lourenço pegou em alguns papéis que estavam sobre a secretária e dirigiu-se para uma sala contígua na companhia do Dr. João Lourenço.

- Curiosa esta Dª Cândida, veio apenas saber de ti, alguém lhe tinha dito que entravas hoje de serviço. Fartou-se de elogiar as tuas capacidades, mas não lhe consegui arrancar uma única queixa!

- Caro Lourenço, o problema desta senhora é atenção, a morte do marido deixo-a numa solidão devastadora e os filhos infelizmente ainda não compreenderam que a ajuda que a mãe necessita não é clínica, mas afectiva.




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