7 de novembro de 2004

O Encontro (Parte III)

(E foi aí, junto à montra da livraria, que a viu pela primeira vez, numa húmida manhã de Outono.)

Sem dizer mais pousou sobre a mesa o livro que adquirira ao “Resende” e tirou a gabardina salpicada de Outono que depositou com elegância e cuidado num cadeira vaga. Estava agora ela desfolhada à sua frente, tal como as árvores no Outono que deixam cair a capa e mostram sem pudor a seu interior, aquele em que se apoia a sua beleza exterior.

Ele, com um olhar terno e envergonhado não pode deixar de admirar a sensível silhueta inegavelmente feminina que ela transportava debaixo do manto que agora cobria a cadeira. Acordou repentinamente daquele estado contemplativo e pensou que teria de iniciar uma conversa. Mas qual? Como?

Começou por perguntar se ela queria um café. Ela com um elegante e discreto gesto expôs a sua concordância. Ele chamou o empregado e pediu dois cafés, longos. Depois olhou para o livro que ela tinha pousado sobre a mesa e logo soube como iniciar a conversa.

- Desculpe mas não sei o seu nome?

- Isabel. Respondeu ela.

- Pedro, muito prazer – disse ele, curvando ligeiramente a cabeça, ao que ela respondeu com igual delicadeza.

- Vejo que as “Histórias de um Faroleiro” lhe despertaram a atenção…

- Não até hoje. Mas esta ilustração na capa do livro tem algo que despertou em mim uma incompreensível vontade de o ler. Fez-me pensar que histórias terá um faroleiro solitário para contar? Quais os seus desejos? Que temerá ele? Como viverá?
Confesso que os faróis sempre me fascinaram, mas nunca tinha olhado para o faroleiro. Talvez tenha sido isso, o fascínio pelos faróis, que me levou a comprar o livro.
Oh, desculpe ainda não parei de falar…


- Não se preocupe Isabel, Posso trata-la assim?


- Claro Pedro?!


- Pois eu estava a ouvi-la com muita atenção e até talvez lhe possa responder a algumas dessas questões.


Nesse momento Pedro foi interrompido pelo empregado que depositava sobre a mesa dois cafés longos, com aspecto deliciosamente cremoso, a julgar pela espuma. Fumegavam intensamente, de tal modo que só de olhar para eles, uma pessoa era capaz de se queimar.

Quando o empregado se afastou, Isabel retomou a conversa.

- Estava a dizer-me que poderia responder a algumas questões…

- Sim posso, se estiver interessada.

- Não me diga que fui enganada??

- Como assim, disse Pedro muito intrigado.

- Na livraria, o senhor Resende garantiu-me que o livro acabara de ser lançado e que hoje até tinha chegado mais cedo para fazer a montra. Mas você parece já ter lido o livro...

- Penso que não a enganaram e para se sincero, ler, o que se diz ler, ainda não li o livro.

- Então é faroleiro?

Pedro, primeiro sorriu, mas acabou por lançar uma pequena gargalhada antes de responder.

- Bem, na verdade não. Mas também não é necessário ler o livro, nem ser faroleiro, para saber como é vida de um faroleiro.

À última afirmação dele, ela respondeu de forma muda, mas a luz da confusão iluminava de forma evidente a expressão da sua face. Pedro continuou.

- Queria saber que histórias tem um faroleiro para contar?
As mesmas histórias que tem a Isabel, ou eu, para contar. Cá no fundo todos somos um pouco faroleiros. Seres solitários que passam pela vida com uma candeia na mão deixando que outros vejam a nossa luz e se guiem por ela.


Isabel parecia cada vez mais espantada. Dos seus lábios impecável e discretamente pintados, apenas minúsculos movimentos, quase tremores denunciavam a sua vontade para dizer algo, mas ela nem sabia bem o que dizer. Pedro continuava.

- Já não me lembro de todas as suas questões…

- Vê como eu estava a falar demais, conseguiu ela articular.


- Mas recordo que tinha curiosidade em saber que temerá ele. Pois eu penso que ele teme o mesmo que tememos todos nós, Teme a escuridão.


Cada vez mais suspensa pelas palavras de Pedro, Isabel tinha o olhar preso nas palavras, verdadeiros desenhos de sentimentos que Pedro ia rabiscando com movimentos seguros e coordenados dos lábios.

- A escuridão?? Mas essa não é a razão da sua existência? Não deixar que a escuridão atinja os outros.

- Sim, de um acerta forma Isabel. É claro que a sua missão é garantir a luz dos marinheiros, mas não é essa "escuridão" que me refiro. A escuridão que o personagem desse livro, como tantos outros faroleiros teme, é a sombra da mesquinhez de sentimentos, a sombra da fome, a fome de sentir-se vivo, a sombra da morte, a morte dos sentimentos bonitos e sinceros que hoje parecem perder-se a cada esquina. Está a compreender?


- Sim estou a compreender.


Neste momento ela solta uma gargalhada e continua.

- Estou a perceber que me estava a enganar, pois já leu o livro. Ainda agora disse “o personagem desse livro”.

- Não Isabel, e vou utilizar uma palavra que marcou o início desta nossa conversa. Acreditedisse Pedro recalcando vocalmente a palavra – que não li, apenas acredito que essa personagem que conta as histórias nesse livro não é diferente de si ou de mim.

- Estou a ver... igual a tantas pessoas anónimas. Disse ela com uma expressão mista da gracejo e sensibilidade

- Já agora não querer dizer-me como acaba o livro?


E ao dizer isto pousou a mão sobre a capa, parecendo querer proteger o final do olhar penetrante de Pedro. Pedro esboçou um sorriso maroto e respondeu.

- Não… Tenho medo de acertar! – Acabou por dizer Pedro, terminando com um sorriso traquina. –

- Mas posso, se quiser autografar-lhe o livro. Assim, quando o ler, pode sempre lembrar-se deste Faroleiro.

Nesse momento o antigo relógio de pêndulo, sinal do passado glorioso da leitaria, anunciou a hora, a hora certa.

Isabel desconfiada da pontualidade de tão velho relógio olhou para o seu novo e brilhante relógio, confirmando que, apesar da idade aquele relógio continuava a manter a agilidade para correr ao mesmo ritmo dos mais jovens sem se atrasar. Agarrou na gabardina, a qual vestiu agilmente num único movimento, enquanto ia dizendo.

- Pedro, vou ter de ir, senão atraso-me para um compromisso. Foi um prazer falar consigo, talvez noutro dia me conte como termina a história deste faloreiro.

Enquanto isso levantava a mão em direcção ao empregado, quando foi travada por Pedro.

- Esqueça isso. O café foi uma oferta minha.

- Tem razão. Disse ela enquanto pegava no livro sobre a mesa.

Nesse momento ela estendeu a mão que ele pegou delicadamente. Após uns instantes de contacto intenso dos seus olhos que se beijaram em silêncio, ela rodou sobre si e avançou em direcção à porta. Pedro apenas teve tempo para lançar um “ – Voltaremos a ver-nos?

Ela parou, virou-se e respondeu.

- Não sei Pedro. Pensei que o seu faroleiro soubesse todas as respostas. Não me diga... a vida é feita de luzes e sombras e nunca sabemos qual se esconde ao virar da esquina. Teremos que esperar, pelo menos sabemos em que esquina está guardada esta Luz.

E Saiu. Pedro, que entretanto se tinha levantado, deixou-se cair inerte na cadeira tentando absorver as últimas palavras de Isabel, uma a uma, como quem saboreia um prato tentando perceber que adorável sabor é aquele que se esconde na amnésia das papilas gustativas.

Cá fora, com o guarda-chuva aberto, Isabel consegue chamar um Táxi. Já a caminho do seu destino, pensa naquele encontro, um encontro casual, mas nada banal. Surpresas da vida, pensou. Tentava perceber porque motivo tinha atravessado a rua e tomado café com alguém que não conhecia. Algo de estranho acontecera com ela naquela manhã. Lançou o olhar sobre o livro deitado sobre o banco e com um sorriso pensou: “Foi magia do farol!

Deitou a mão ao livro. Abriu a capa e no interior, na aba da capa de protecção viu que estava uma fotografia do autor e uma pequena nota biográfica que começou a ler. Repentinamente parou de ler e aproximou o livro dos seus olhos, para observar com atenção a fotografia.

Sem emitir qualquer som, riu espalhafatosamente de si própria. Deixou o olhar sair pela janela e um pensamento atingiu a sua mente como um raio de luz:

“Tinha feito todo o sentido que Pedro lhe tivesse autografado o livro.”



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