Farol da Vida (Capítulo 9)
Ainda com a tristeza a inundar-lhe o olhar Pedro rodou ligeiramente a cadeira e fitou o enorme quadro na parede do gabinete procurando encontrar nele a luz, uma luz forte e segura que o conduzisse por entre as agitadas ondas que o mar da vida lhe tinha reservado para esse dia e finalmente o conduzisse a um porto de abrigo.
Com o equipamento meticulosamente dobrado dentro do seu Ellipse Sac à Dos da marca Louis Vuitton, sobre o seu ombro direito, Manuela entrou no elevador e premiu a tecla do piso zero. A viagem foi curta e mal a porta abriu foi rodeada por um turbilhão de notas musicais em festa que vogavam freneticamente em todas as direcções, incitando ao movimento e à folia.
Cumprimentou o deus grego que estava na recepção com um sorriso forçado, ao qual ele respondeu com um olhar guloso que a radiografou do pescoço aos joelhos. Indiferente seguiu para os balneários. Sentia uma necessidade extrema de se torturar fisicamente, pois talvez dessa forma conseguisse esconder-se da dor que lhe espancava, impiedosa, a alma. Que manhã aquela, primeiro a indiferença de Pedro, depois aquela reunião, bolas! Que mais lhe poderia ainda acontecer naquele dia, pensou.
Já no balneário, sentou-se e sensualmente começou a correr as meias de nylon em direcção à ponta do pé que permanecia estirado com o calcanhar levantado. O seu corpo estava ali, mas o seu pensamento permanecia ao lado de Pedro no escritório. Lançou um olhar furtivo ao telemóvel. Talvez pudesse telefonar para saber como estava a decorrer o trabalho… Pensou melhor e desistiu da ideia. Do saco Louis Vuitton extraiu o equipamento que vestiu calmamente, intervalando cada movimento com um pensamento doloroso.
Por fim, já vestida, colocou a roupa cuidadosamente no armário. Dirigia-se para a saída quando parou em frente do gigantesco espelho que repousava sobre a fila de lavatórios. Olhou profundamente o espelho e teve vontade de lhe perguntar: Espelho, espelho meu, à mulher mais bela do que eu?
Por momento ficou a admirar como o body azul-marinho, se colava à sua pele moldando e salientando cada curva do seu busto, mais abaixo, nem uma única prega ou ruga. Rodou lateralmente um pouco, espreitando o perfil e apreciou como os calções de Lycra lhe torneavam as ancas.
Barriga? Nem um bocadinho, tinha um corpo perfeito, só Pedro lhe resistia. Olhando novamente o espelho de frente, levantou as mãos até junto dos ombros e lentamente começou a acariciar o seu corpo, deixando escorrer as mãos até às ancas, enquanto murmurava:
- Ai Pedro, como consegues resistir, como?
Por fim saiu deixando para a mola a tarefa rotineira de fechar a porta. Seguia por um corredor envidraçado com a intenção de ir assistir a uma aula movimentada, qualquer uma lhe servia desde que a fizesse transpirar. Necessitava expulsar de dentro de si pelos poros do corpo as toxinas que lhe envenenavam a alma, como se tal fosse possível.
Nesse momento reparou que num tapete de jogging estava Joana Sousa. Joana era directora criativa numa agência publicitária. Tinha-a conhecido ali mesmo no ginásio e tornaram-se boas amigas. Manuela simpatizava com ela, não se podia dizer que eram “best friends”, mas já compartiam algumas intimidades.
Manuela olhava para Joana em cima do tapete quando teve uma recaída. Voltaram os pensamentos sobre a sua figura que agora comparava com a de Joana. Joana era bonita, com cabelos naturalmente claros. Um olhar intensamente claro e magnético contrastava com a pele espontaneamente dourada cobrindo um corpo deleitoso. Contudo, nem sendo quase uma década mais nova do que Manuela, Joana não conseguia provocar nos homens o espanto e a cobiça que Manuela originava. Era mais cheiinha, toda ela era curvas, bem torneadas num corpo firme. Até um cego facilmente via que Joana não saíra ao pai, toda ela era mulher, mas para Manuela o seu corpo mais esguio e de curvas menos acentuadas proporcionava uma estrada de condução mais suave e isso agradava-lhe. Aquela comparação com Joana refrescava a sua confiança e engrandecia o seu ego. Talvez fora esse o motivo pelo qual tinha, desde o início, gostado de Joana, ela não era uma concorrente à sua altura. Ficava sempre a perder na comparação, o que lhe agradava.
Pensou ir ter com ela, talvez caminhar um pouco a seu lado, afinal sempre poderiam conversar, e quem sabe, talvez assim a dor resolvesse acompanhar as palavras e abandonar de vez a sua alma sem ter de torturar o corpo mais do que o necessário.
Abriu a porta da sala e cumprimentou Joana:
- Olá Joana, bom dia!
- Olá Manuela, tu por aqui a esta hora? Não me disseste que vinhas?
- Deixa-me lá, não sabes o dia que levo, e ainda agora começou!
- Estou a ver… – disse Joana - Problemas no escritório ou em casa?
- Em casa? Antes fosse… - resmungou Manuela – É mesmo no escritório.
- Já estou a adivinhar. Mais um fracasso na tua abordagem àquele arquitecto… como se chama ele?
- O Pedro! – Disse Manuela num tom combalido e resignado.
- Pois o Pedro. Mas tu não aprendes? Não sabes que quanto mais corda lhe dás mais ele te enforca?
– Aprender, dizes tu! Isso é fácil de dizer, o difícil Joana, é trabalhar todos os dias com um homem daqueles a teu lado, um homem que exala charme em cada centímetro de pele, em cada olhar, em cada lufada de ar que expele, em cada palavra que pronuncia , em…
- Chega, chega! Já percebi. Mas não deve ser bem assim como descreves, claro que como dizia o poeta “O amor é cego…”
- Algum dia terás a oportunidade de o conhecer e depois veremos se mudas de opinião.
Aquele foi um desejo que saiu apenas da boca de Manuela, pois apesar da sua superioridade face a Joana, tantas vezes por ela conferida, preferia mesmo assim que ela nunca conhecesse Pedro, Pedro era seu, havia se ser seu e somente seu.
Finalmente Manuela subiu para o tapete colocado à direita de Joana e começou a andar.
- Queres ir comer algo a uma esplanada junto ao mar depois? – Convidou Joana
- Quero. Hoje não me apetece fazer mais nada. Nem vou mais por os pés no escritório. O Pedro que se arranje, que se tem idade para me rejeitar, também tem idade para se desembaraçar sozinho no escritório.
- Boa! Vai ser um dia de arromba. Verás que ao fim do dia te nasceu outra alma! podíamos até ir comer ao restaurante do meu Ex. – Rematou Joana.
- Não sei como consegues ir comer ao seu restaurante…- Salientou Manuela.
- Não vejo qual é o problema. É verdade que as coisas não correram bem entre nós…Também é verdade que a separação não foi um processo propriamente pacífico e sem dor, mas agora está tudo sanado e o importante é olhar para a frente, cada um no seu caminho. Sem atropelos nem ressentimentos, bem quase sem…- Disse Joana com um risinho.
Manuela abanou a cabeça e anuiu:
- Bem se tu não te importas, quem sou eu para reclamar…
Nesse momento entrou na sala o Personal Trainer de Manuela. Jovem, alto, musculado, achava-se o máximo e além disso como estava na moda ter um, fazia sucesso tremendo, principalmente entre as trintonas e quarentonas que adoravam a sua ascendência de polvo na carta astral do Zodíaco, pois passava o tempo todo com os “tentáculos” colados nelas.
- Manuela que fazes aqui a correr sozinha? – Disse ele enquanto assentava um dos tentáculos nas costas de Manuela, fazendo compassados e suaves movimentos ascendentes e descendentes roçando o limite das ancas.
- Manuela, querida, sabe que eu sou responsável pela sua boa forma física e tenho de velar pessoalmente pelo seu programa de treino.
Mas o polvo estava com azar naquele dia, pois Manuela sentia-se com instintos de pescadora e rispidamente, com uma ponta de ironia deu um puxão na cana e respondeu-lhe:
- Hoje quero uma tortura pessoal. Por isso o querido, vá tomar uns batidos multi-vitamínicos ou de proteínas, que eu hoje não estou com paciência para os seus programas de treino. Isto é entre mim e o meu corpo.
Visivelmente transtornado, com o ego como o rabo dos cães, retirou imediatamente o tentáculo das costas de Manuela dizendo apenas:
- Pronto querida, não é necessário ser tão agressiva, eu só queria ajudar, afinal é para isso que me paga!
Enquanto o polvo se afastava, Joana tentava a todo o custo manter a pose e conter o riso.
- Ai Manuela, que tu hoje estás…
- Estou, estou muito pior do que possas imaginar, já não me bastava não conseguir ter o afago que anseio, ainda tenho de abdicar para ele de um dos meus projectos.
Nesse mesmo momento, mas bastante longe dali, em São José, Joaquim acompanhava Manuela na dor, diferente, mas igualmente cruel. Prostrado no varandim, extenuado pela luta interna que travou com o conteúdo daquela carta, Joaquim compreendeu que chegara a hora de partir e deixar o seu farol, aquele farol que era como um membro da sua família, uma extensão do seu corpo.
A mensagem era explícita: teria de abandonar definitivamente o farol. Levantou os olhos do chão do varandim e espraiou o olhar pelo horizonte, focando aquele ponto inatingível onde o azul do céu se funde com o azul do mar. Esticou o braço procurando, nesse ponto, separar o mar do céu e viu que era impossível.
Uma impossibilidade tão imensamente grande, quanto separa-lo, a ele, do seu farol!
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