2 de outubro de 2005

Sonho Poético (Parte 1/2)

Cada vez mais era um sacrifício ter de, semanalmente, cumprir aquele compromisso rígido de ir jantar a casa da irmã. Em algo ela tinha razão, se não fossem aqueles jantares poderiam passar meses sem se verem, apesar de viverem na mesma cidade. De qualquer modo, a obrigatoriedade de todas as semanas, ter de ir jantar com ela era quase como uma prisão.

Reflectiu como aquele pensamento poderia ser mal interpretado, pois na verdade adorava a sua irmã. Desde pequeno ela fora para ele como uma mãe, apesar de ser mais nova. Os dez meses de diferença entre eles nunca tinham realmente sido suficientes para os distinguir e, depois da morte da mãe, ela tinha assumido integralmente o papel de dona da casa, inclusive tinha tentado coloca-lo sob a protecção das suas asas…”mãe galinha”.

Esperava que hoje ela não lhe tivesse preparado mais uma surpresa. Ainda recordava a Patrícia, a última colega de trabalho que ela tinha convidado para jantar. Lembrava particularmente a forma subtil como os apresentou: “ – Ele é o Jorge, O meu irmão solteiro. Ela é a Patrícia, recém divorciada. Como podem ver têm tudo em comum: estão livres!”

Livres, pois! Esquecia ela que, para duas pessoas ficarem juntas, era necessário algo mais do que simplesmente estarem livres.

Ligou o pisca, virou à direita e entrou na urbanização de vivendas dos subúrbios onde vivia a sua irmã. Mais duzentos metros, virar à esquerda, mais cinquenta metros, virar à direita, mais vinte e cinco e parar. Estacionou o carro no acesso à garagem. Atravessou o relvado pelo caminho de pedras que conduzia directamente à porta principal.

A irmã veio recebe-lo à porta.

- Olha o meu irmãozinho solteirão! Olá Jorge! Estávamos à tua espera.

- “Estávamos…” – Disse ele, dando um passo atrás desconfiado.

- Descansa maninho, hoje não há surpresas

- Ufa!

Disse Jorge rindo e passando a palma da mão pela testa, o que provocou uma gargalhada da irmã.

Ela enfiou-lhe o seu braço no dele e puxou-o para dentro.

- O jantar está um pouco atrasado, fiquei presa no trabalho até mais tarde e o Tiago também está atrasado.

- E o Nuno e a Rita?

- O Nuno está fechado no quarto “pregado” ao computador. A Rita foi a casa de Inês, já vem. Possivelmente vamos ter de telefonar… já sabes.

- Estou a ver…. Vou cumprimentar o meu sobrinho. – Disse Jorge afastando-se em direcção às escadas.

Subiu as escadas em “L” e percorreu meio corredor. Chegado à porta anunciou a sua chegada batendo com a mão. Do interior veio uma mensagem.

- Vou já mãe!

Abriu a porta dizendo:

- Vais onde?

- Olha quem é ele! Então tio, como vão os cotas?

- Atenção ao respeito rapazinho… não te esqueças que te limpei o rabinho muitas vezes.

- Por isso mesmo! – Disse Nuno rindo.

- Que estás a fazer, não será estudar?

- De algum modo… diga-mos que estou a estudar um misto de natureza humana e relações públicas. – Afirmou Nuno com uma expressão velhaca.

- Estou ver! Messenger.

- Ainda bem que apareces tio. Estava a falar com uma miúda. Ando há meses a tentar convence-la para se encontrar comigo, mas até agora só negas. Isto é pior que a escola…

- Tu sabes quem ela é?

- Nops tio!

- Valha-nos ao menos que ainda há pessoas com bom senso. Tu já pensaste que a pessoa do outro lado pode não ser exactamente quem tu pensas e que um encontro desses pode ser muito perigoso?

- Ó tio… só mesmo um cota para pensar nisso!

- Toma cuidado Nuno, quem sabe se não estás a falar com um homem e por isso é que não aceita os teus convites.

- Isso tinha piada. – Disse Nuno rindo. - Tio, tenho de ir à casa de banho. Não te importas de lhe dar um pouco de trela por mim. Verás que não deve ser nenhum homem.

Jorge sentou-se em frente ao monitor, pegou no rato e utilizando as barras de deslocação foi observando o diálogo. O nick dela era… engraçado: “sonhadora”. De repente:

- Então não dizes nada? Ficaste sem fala, isto é, sem letras?

- Jorge meditou e decidiu não responder. Mas ela insistiu e ele avançando com as mãos para o teclado escreveu.

- Que esperas que te diga depois de todas negas?

- Vais desistir agora, depois de tantos meses?

- Quem falou em desistir? Eu sou como o dia, que todos os dias persegue a noite sem a apanhar, mas nem por isso desiste. Assim como nós.

- E quem és tu “poeta”? A noite ou o dia?

- Tu és o meu sol, Sonhadora, por isso eu só posso ser a noite, aqui preso nesta escuridão a que tu me condenaste.

- E não posso eu ser a noite? A luz do luar tem um encanto especial.

- Também é verdade! Tu podes ser o que quiseres, pois tens um brilho especial de luz pura e radiosa. A luz de um sonho que, apesar de teimar em não se tornar realidade, não nos deixa parar de sonhar.

- LOL, LOL – respondeu ela.

- Já imaginaste que eu posso não ser como tu pensas?

- Claro que sim. Acredito que serás um sonho bem mais bonito do que eu jamais poderei imaginar.

- Subestimas o poder da imaginação.

- Talvez. Mas o facto de um cego não conhecer a cores e simplesmente as imaginar, por mais fértil que seja a sua imaginação, não esmorece o brilho do seu olhar no dia em que finalmente as consegue ver. Certo?

Do outro lado, silêncio total. Mais uns momentos de espera e nada. Por fim Jorge atacou o teclado.

- Então sonhadora, acabou o sonho?

Resposta inesperada:

- Quem és tu?

- O poeta! :)

- hummm…

Dito isto entrou em estado ausente.

Está tudo estragado, pensou!

- Então tio como vai isso? – Disse Nuno de volta ao quarto.

- Não muito bem. Estive a conversar com a tua amiga Sonhadora, mas parece que ela não gostou da minha poesia. Acho que ficou desconfiada e foi-se embora.

Nuno observou no computador a troca de palavras e por fim sentenciou:

-Pudera… com uma conversa destas. Não admira que continues solteiro tio! Mas não te preocupes, não é grave, afinal há meses que ando atrás dela e é só cortes.

Do fundo da escada, a voz da irmã livrou-o dar uma resposta ao jovem sabichão.

- Vamos jantar!

- Vamos tio. – Disse Nuno correndo para a escadaria. - Estou com uma fome…

Quem diria, ir jantar a casa da irmã e levar uma nega de alguém que nem sequer conhecia.

E dissera-lhe a irmã, à porta, que naquela noite não havia surpresas…

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