5 de outubro de 2005

Sonho Poético (Parte 2/2)

O jantar decorreu como esperado. A sua irmã procurava saber os desenvolvimentos da sua vida amorosa. Quando deixaria o seu irmão mais velho de ser solteiro? Até parecia que essa era a grande preocupação da sua vida. Lembrava as mães de outros tempos que só descansavam quando viam as filhas casadas.

Tiago brincava com a situação e apoiava a sua opção de continuar solteiro. Claro que tal lhe valia uns olhares fulminantes da mulher e uma que outra valente cotovelada. Nuno achava muita piada a toda a situação e apenas ria, enquanto Rita parecia ainda não ter voltado da casa da amiga.

Jorge respondia às provocações da irmã de forma quase automática. A sua mente pairava no andar superior, sobre o teclado do computador de Nuno, enfeitiçado pelo brilho da tampa que a sonhadora lhe tinha dado. Era estúpido, tinha consciência disso, mas na sua cabeça ainda não tinha conseguido assimilar aquela inesperada situação, mais aquela surpresa em casa da sua irmã.

Depois do jantar, aproveitou uma chamada telefónica para inventar uma desculpa para sair mais cedo e despediu-se até à próxima semana. Nos olhos de Nuno viu a alegria, pois a sua mãe insistia em transformar aquelas visitas do irmão em serões em família. Ainda não tinha fechado a porta e já ele corria pelas escadas em direcção ao quarto. Jorge, dirigiu-se ao carro. Naquela noite apetecia-lhe dar uma volta, não queria ir directo para casa. Conduziu sem rumo ao som de Frank Sinatra:

“…Night and day, you are the one
Only you beneath the moon or under the sun
Whether near to me, or far
It’s no matter darling where you are
I think of you

Day and night, night and day, why is it so …”

Seguiu pela marginal. O som calmo do mar misturava-se com a música que saia do rádio, de forma harmoniosa, íntima, numa cumplicidade sensual. Ao longe a luz do farol, compassadamente, enviava a sua mensagem aos marinheiros perdidos, tal como ele naquela noite.

Encostou o carro, saiu e por momentos ficou ali, encostado, alheio ao mundo, aspirando a música e a maresia que lhe inebriavam os sentidos e o faziam sentir diferente, sonhar. A indicação do sinal horário devolveu-o à realidade, no dia seguinte teria de ir trabalhar, por isso rumou a casa.

A noite de sono tinha atenuado o efeito da conversa do dia anterior. O Mini Cooper, recentemente adquirido, rolada pela avenida quando o telemóvel tocou. Olhou para o visor, era o seu sobrinho. Accionou o botão do sistema mãos livres.

- Bom dia tio!

- Bom dia Nuno! Então essa noite? Muitas negas?

- Nem imaginas o que me aconteceu tio…

- Nem sei se devo imaginar… - Disse Jorge num tom trocista.

- Sabes tio, aquela miúda com quem falaste ontem?

- Sim, a Sonhadora…

- Depois de tu saíres, ela ligou-me.

- Mas tu não tinhas dito que não a conhecias?

- És mesmo cota. Ligou pelo Messenger, tio.

- E que queria ela? Dar-te mais uma nega?

- Pelo contrário. Disse que se queria encontrar comigo.

- A sério? – Disse Jorge. A surpresa foi tal que quase batia no carro da frente, imobilizado num semáforo.

- Sério tio! Combinamos um encontro num bar nas docas.

- E como a vais reconhecer?

- Ela disse-me que levará um lenço vermelho com bolas brancas atado ao pescoço e eu combinei levar a aquela t’shirt da throttleman que tu me ofereceste.

- Boa escolha. Com essa será difícil não te reconhecer. - Jorge riu ao lembrar os motivos da t’shirt.

- Pois tio, mas eu queria pedir-te um favor…

- Mau, mau…

- Não é nada de complicado tio, e descansa que também não te vou pedir dinheiro. Queria apenas que tu fosses comigo ao bar.

- Desculpa??? – Disse Jorge confuso.

- Lembras aquela conversa de não saber quem está do outro lado? Pois a questão é mesmo essa, queria que tu fosses por uma questão de segurança.

- Só me faltava ir fazer de ama-seca, ou pior, segurar a vela!

- Não é nada disso tio. Eu explico. Eu vou levar a t’shirt como combinado, mas vou vestir uma camisola por cima. Quando chegar ao bar se ela me agradar tiro a camisola para ela me reconhecer, se não me agradar fico com a camisola vestida e ela pensará que eu nunca fui. Depois invento uma desculpa e passo a ser eu a dar-lhe as negas.

- E qual é o meu papel nessa tua estratégia tão bem elaborada.

- Tu vais, finges que estás sozinho e ficas apenas a vigiar. Claro que também te podes divertir e até, quem sabe encontrar alguém e finalmente dás uma alegria à mãe.

- Isso é que era bom. – Disse Jorge, soltando uma forte gargalhada.

- Vá lá tio. – Suplicava Nuno.

- Ok, está bem. E quando é esse encontro?

- Está noite!

- Bolas Nuno, tinha logo que ser esta noite? Vou ter de anular um encontro.

A Filipa é que não iria ficar nada satisfeita. Explicar-lhe-ia que era por uma boa causa, o seu sobrinho. Pensando bem, aquela dedicação à família até poderia ser-lhe favorável, elas são sempre sensíveis a estes argumentos.

- E então tio, posso contar contigo?

- Podes. Que remédio!

- Então até logo tio. Marcamos encontro para o bar “Farol da Barra” às dez.

Nuno desligou antes que Jorge pudesse dizer algo. O resto do dia foi uma tortura. Estava com uma vontade louca de olhar para a sonhadora. Por muito que espremesse os neurónios não conseguia obter uma imagem dela. Finalmente às dez, depois de um jantar ultra ligeiro, o único que o estômago admitiu, encontrou-se com Nuno à porta do “Farol da Barra”. A entrada fazia-se por uma pequena porta em arco e lá dentro o espaço tinha sido redesenhado para lhe dar a forma circular, semelhante à da torre de um farol. Ao centro, de uma abertura no tecto, uma lâmpada emanava uma luz suave, imitando o reflexo da luz do farol no cimo da torre.

Apesar de ainda ser cedo, o bar já fervilhava. A um canto uma banda jovem tocava músicas conhecidas, numa toada calma. Juntos inspeccionaram a sala, procurando avidamente a Sonhadora. Mas não havia ninguém com lenço vermelho com bolas brancas atado ao pescoço. Inicialmente Nuno ficou desiludido, mas viu um grupo de colegas aos quais prontamente se juntou.

A desilusão de Jorge era ainda maior. Durante todo o dia ansiou por aquele momento, e afinal parecia que montanha tinha parido um rato. Dirigiu-se ao bar e pediu uma bebida. Enquanto lha preparavam observou novamente a sala e nada. Já servido decidiu ir encostar-se a um dos bancos excessivamente altos que rodeavam o palco onde a banda tocava, agora uma música mais animada. Ao seu lado estava uma mulher ainda jovem, cabelo comprido, negro e liso. Vestia umas calças pretas, largas e uma camisola clara com decote em “V”. Jorge Sorriu-lhe e perguntou se o banco estava ocupado. Ela respondeu que não. Daquela posição conseguia controlar a porta de entrada e simultaneamente o seu sobrinho. Era a posição perfeita. Observou a sua vizinha que parecia absorvida pela música. O tempo passava e nem sinal da Sonhadora. Lembrou a brincadeira de Nuno ao Telemóvel nessa manhã: “Claro que também te podes divertir e até, quem sabe, encontrar alguém e finalmente dás uma alegria à mãe.”

Pensando isto lançou um novo olhar à sua companheira de audição. Era bela, o decote em “V” realçava-lhe o peito, pequeno, mas altivo. Talvez pudesse tentar a sua sorte e quem sabe…

- Desculpe, posso oferecer-lhe uma bebida?

- Não me parece, estou à espera que alguém. – Disse ela diplomaticamente.

Bolas, mais uma nega! Que sina a sua. O melhor era mesmo desaparecer dali discretamente, antes que fosse humilhado por algum Tarzan acérrimo defensor do conceito de propriedade privada.

Quando se preparava para docemente partir, os jovens começaram a tocar a música que na noite anterior tinha levado a sua imaginação voar mais alto que as estrelas e a sonhar acordado.

“…Night and day, you are the one
Only you beneath the moon or under the sun
Whether near to me, or far
It’s no matter darling where you are
I think of you

Day and night, night and day, why is it so …”

Decidiu ficar mais uns minutos para ouvir a música. Por momentos voltou à marginal, junto ao farol. No final despercebidamente deixou escapar a frase:

- O dia também persegue a noite sem nunca a apanhar, resta-lhe o consolo de com ela poder sonhar!

Momentos depois do banco do lado veio uma resposta.

- Deve ser porque a luz do luar tem um encanto especial! Um brilho especial de luz pura e radiosa.

Jorge, recordando aquelas palavras sobre a forma escrita da noite anterior, olhou para ela e a medo disse:

- Sonhadora?

Ela respondeu com um questão que não deixava espaço para a dúvida.

- Poeta?

Naquele momento, uma comunhão de riso uni-os.

Jorge depois de conseguir aplacar o riso perguntou.

- Não estavas à espera de alguém? Onde está o lenço?

- Estava à tua espera e o lenço está aqui. – dizendo isto abriu a carteira para que ele pudesse ver o lenço vermelho com bolas brancas.

- Sabes como são estes encontros às cegas, há que ter muito cuidado. Mas já que perguntas e onde está a famosa t’shirt?

- Sabes como são estes encontros às cegas… - respondeu Jorge com um ar divertido.

- Pois, pois estou a ver que, por pouco a minha viagem tinha sido em vão. – Disse ela.

- A tua e a minha!

Entretanto a banda dera lugar a um DJ que procurava por todos os meios martelar-lhes os tímpanos, pelo que Jorge sugeriu que fossem dar uma volta, afinal sempre poderiam aproveitar o luar, que naquela noite estava sublime. Ela prontamente concordou. Jorge gestualmente questionou Nuno sobre a sua saída, ao que lhe respondeu que sim, que estava tudo bem.

Na manhã seguinte o Mini Cooper rolava mais uma vez pela avenida, desta feita em grande velocidade, atropelando todas as passadeiras de forma impiedosa, quando o telemóvel tocou. Era novamente o Nuno.

- Bom dia Nuno.

- Bom dia tio. Pareces cansado… Isso é que foi uma noite hein?

- Nem tu imaginas.

-Imagino pois. Já não sou uma criança!

- Pois, pois. Então diz-me, qual é o favor para hoje?

- Nenhum tio, é só para saber como correu a tua noite. Quem era o borracho que saiu contigo.

- Bem me parecia. A curiosidade, sempre a curiosidade. Sabes que é igualzinho à tua mãe?

- Igualzinho, igualzinho, tio… não me parece. Diz lá tio quem era? De onde a conhecias? Com uma miúda daquelas eu…até

- Atenção chavalo! – Disse prontamente Jorge.

- Quem é ela tio?

- Pois meu menino, creio que não te devo dizer. De qualquer forma tu não irias acreditar.

- Então tio, não iria acreditar porquê?

- Olha lá, tu ainda não me disseste se a tua sonhadora apareceu.

- Qual quê! Mais uma nega. Eu já estava à espera. Muito fogo de vista, mas mais nada. Não deve ser certamente como aquela miúda que estava contigo. Deve ser alguma feiosa que teve medo de dar a cara.

- Estás muito enganado, meu menino. A feiosa da tua amiga sonhadora era o borracho que saiu comigo.

- Não Acredito!

- Que te tinha dito eu? Já sabia que não irias acreditar.

- A sério tio? A sonhadora era aquela deusa que saiu contigo? E o lenço?

- O lenço teve o mesmo tratamento da tua t’shirt. E nunca falei tão a sério.

- Bolas tio, devias ter-me avisado ontem. E onde a levaste?

- Pergunta antes onde acabei de a deixar.

- E onde foi?

- À porta da casa dela! E agora acabaram as perguntas e os pormenores desta história, que já sabes o suficiente. Conversa de cota não era? Até logo Nuno.

Dito isto desligou o telemóvel. À sua mente voltaram as palavras de Nuno na noite do jantar: “com uma conversa destas. Não admira que continues solteiro tio!” Até poderia ser verdade, mas naquele momento, depois do longo passeio ao luar que durara a noite toda, sentia que, finalmente, iria ser capaz de dar a alegria que a sua irmã tanto desejava.

Claro que, ela teria de passar a colocar mais um prato na mesa para os jantares de família.


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